31.12.1997 

A DEMOCRACIA, QUE ARAPUCA*!

Anselm Jappe

“Nunca um candidato especulou de modo mais monótono sobre a monotonia das massas”, disse Marx referindo-se a Napoleão III. Inúmeros habitantes da Itália ou do Brasil devem ter tido a mesma sensação quando viram chegar ao poder um Berlusconi ou um Collor de Mello. Poder-se-ia, então, ter a impressão de que a “democracia”, duramente conquistada, tivesse sido anulada de repente, dado que o uso “despolitizante” da mídia e da indústria do entretenimento permite aos poderosos fazerem eleger pelo povo, “democraticamente”, quem bem entenderem. A diferença entre Napoleão III e seus êmulos modernos (1) é que estes construíram sua fortuna política sobre o uso desabusado da mídia e da notoriedade que a televisão confere. Fizeram-no com tal sucesso, que seus adversários passaram a reivindicar em alto e bom som uma partilha equitativa de tais vantagens(2), ao mesmo tempo em que, virtuosamente, declaram que não fica bem vender um homem político como se vende um detergente. A redução da política a “mero espetáculo” é pois, geralmente, criticada um pouco por toda parte e, sobretudo, por quem se vê, momentaneamente, em desvantagem no terreno do confronto. Quem quer aparecer como crítico sério e preocupado com os destinos da sociedade reclama que a “política”, a verdadeira, séria, com p maiúsculo, seja recolocada em seu trono.

Nesse empreendimento pode-se, certamente, recorrer a alguém que até há pouco não “era mal conhecido e, sim, conhecido como o mal” (Asger Jorn), isto é, Guy Debord, cabeça pensante da Internacional Situacionista (1957 -1972) e autor de A sociedade do Espetáculo (1967) (3). Após ter sido cultuado durante muitos anos nos ambientes que se pretendiam revolucionários, Debord goza, há algum tempo, de uma ampla reputação na própria “sociedade do espetáculo” que combateu ao longo de toda a sua vida, finda em 1994. De fato, e antes de tantos outros, foi Debord quem disse que “tudo o que era diretamente vivido distanciou-se numa representação” (Sde, § 1) e que o espetáculo, a principal produção da sociedade atual” (Sde, § 15), é “a afirmação da aparência e a afirmação de toda vida humana, isto é, social, como simples aparência” (Sde, § 10), porque, “quando o mundo real se transforma em simples imagens, as simples imagens tornam-se seres reais” (SE, § 18). Cada um, escreve Debord em 1988, nos Comentários sobre a sociedade do espetáculo (4), conhece o mundo apenas pela mediação das imagens escolhidas por outros que não o fazem desinteressadamente. ” A imagem construída e escolhida por outra pessoa tornou-se a principal ligação do indivíduo com o mundo que, antes, ele olhava por si mesmo de cada lugar onde pudesse ir… O fluxo das imagens carrega tudo e, analogamente, é outra pessoa que comanda a seu bel-prazer essa síntese simplificada do mundo sensível”.

Na verdade, Debord não coloca no centro de sua análise apenas a televisão como suposta fonte de todos os males, pois, ao mesmo tempo, sublinha que “o espetáculo não pode ser compreendido como o abuso de um mundo da visão, o produto das técnicas de difusão maciça das imagens” (Sde, § 5) e que, “se o espetáculo, tomado sob o aspecto restrito dos ‘meios de comunicação de massa’, que são sua manifestação superficial mais opressiva, dá a impressão de invadir a sociedade como uma simples instrumentação, tal instrumentação nada tem de neutra; é a própria instrumentação que convém ao automovimento total da sociedade” (Sde, § 24 ). Como veremos, o espetáculo não é outra coisa senão a forma assumida pelo capitalismo na época em que a economia atingiu a plena independência irresponsável. Mas pouco importa a jornalistas ou a pensadores em falta de citações: tirada de seu contexto, uma pequena frase sobre o “espetáculo” bem pode servir como ornamento pseudocrítico para discursos mantidos, exatamente, até na própria televisão (5). Além disso, desse modo se contribui para aquela recuperação banalizadora de que, atualmente, é objeto a teoria de Debord, depois que trinta anos de ostracismo não conseguiram fazer esquecê-la (6).

A nostalgia da “política verdadeira” – considerada idêntica ao “confronto democrático” – que precisaria ser salva da demagogia dos que manipulam os cérebros inundando-os com imagens transmitidas pela mídia, é conseqüência do conceito muito positivo de “política” que sempre caracterizou quase toda a esquerda. Mas Debord não propõe defender completamente a política, nem mesmo a “revolucionária”, da distorção e da superficialidade introduzidas pelo “espetáculo”; ao contrário, mostra que tanto a política quanto o espetáculo são resultados do fetichismo da mercadoria e que ambos entram em crise quando entra em crise toda a sociedade baseada no fetichismo da mercadoria. Tal caracterização da política enquanto categoria fetichista contradistingue as poucas teorias atuais que não abandonaram a categoria de totalidade social como, ao contrário, fizeram não só o pensamento burguês mas também quase todas as correntes que nasceram das idéias de Marx e que retomaram a alguma variante do pensamento positivista. Isso, que hoje reina de modo incontestado, costuma absolutizar e ontologizar os diversos campos em que se apresenta subdividido o espaço empírico da sociedade, declarando “metafísica” e “superada” cada tentativa de encontrar seu princípio comum. “As imagens”, os “meios de comunicação” ou “a política” aparecem como categorias que conservaram uma lógica própria. Reinterpretado sob essa ótica, o conceito de espetáculo não parece se distinguir muito de algo como a “midiologia” de Régis Debray (7) ou das afirmações de Jean Baudrillard, para quem, de agora em diante, tudo é uma imagem que não reflete mais uma “realidade”. Mas, em Debord, a “imagem” não é um fator circunscrito, separado da totalidade social. “Espetáculo” é toda substituição do vivido e sua representação, toda situação em que a contemplação passiva de uma idéia, de uma imagem – em sentido amplo – substitui o viver na primeira pessoa. O stalinismo, por exemplo, também era um espetáculo; a União Soviética e os partidos comunistas do Ocidente ofereciam uma simples imagem da revolução. Enquanto existia um proletariado inquieto, garantiam – no interesse comum de todos os proprietários do mundo, a Leste como a Oeste – que a identificação com as formas falsas da revolução (ou com as pretensas revoluções muito distantes, no Terceiro Mundo) impedisse toda verdadeira actividade crítica no imediato. “Quem fica sempre olhando, para saber o que vem depois, nunca age; assim deve ser o bom espectador” (8). Tudo o que falta à vida real se consuma sob a forma de ilusões compensatórias, fazendo esquecer, assim, a escandalosa pobreza da vida cotidiana, individual, real- pobreza mais escandalosa ainda quando confrontada com as possibilidades criadas pelo desenvolvimento das forças produtivas. O orgulho, para um ator, pode ser um mecanismo espetacular do mesmo modo que o culto a Che Guevara, os integrismos e os nacionalismos, o esporte ou o terrorismo, os sindicatos e os partidos. Enquanto a religião era a projeção da potência humana no céu, onde levaria uma vida aparentemente independente, o espetáculo é sua projeção sobre portadores terrestres igualmente afastados do poder dos homens que não são reconhecidos pelas próprias criaturas que geraram. O espetáculo é, então, a forma mais elevada da alienação e, justamente, do fetichismo da mercadoria.

Contudo, o conceito de espetáculo não representa uma simples teoria da “manipulação” ou da “falsa consciência” que estavam em moda nos anos 60. O espetáculo é algo muito diferente de uma banal propaganda que faz as coisas parecerem distintas do que realmente são (como poderia acreditar, por exemplo, a ingenuidade interessada de Louis Althusser). A redução do real à imagem, a degradação do ser a ter e, depois, a aparecer (Sde, § 17) são apenas o aspecto mais visível da tendência social à “abstração” que constitui o “modo de ser concreto” do espetáculo (Sde, § 29). Debord – que deve muito à obra História e consciência de classe do jovem Lukács – aponta, no segundo capítulo de A sociedade do espetáculo, a origem da abstração na forma-mercadoria (ou forma-valor). Esta é a “forma-célula” (Marx) de toda a sociedade burguesa e não só de sua economia. As implicações do conceito de forma-valor – do qual, também em Debord, frequentemente se encontram apenas indícios, embora preciosos – não incidem tanto sobre considerações relativas à economia entendida como esfera em si (que talvez, enquanto “base”, determinasse a “supra-estrutura”, como ensina o marxismo positivista), quanto, ao contrário, sobre o conceito de “fenômeno social total” (Marcel Mauss). A própria formação da “economia” e da “política” como esferas separadas, desconhecidas nos períodos pré-capitalistas, é uma conseqüência da forma-mercadoria. Pois o pensamento burguês ontologiza, de modo abusivo, essas esferas. O valor de troca, como se sabe, é determinado pela quantidade de trabalho abstrato contido na mercadoria, anulando todas as diferenças qualitativas dos trabalhos e dos produtos. Este processo estende seu efeito de abstração a toda a vida social: nada mais conta como ser concreto e, sim, como quantidade de dinheiro. Só um longo hábito faz, assim, com que a consciência comum não perceba mais a loucura incluída no fato de que, a título de exemplo, a poluição atmosférica “custa” menos que as perdas que uma redução do tráfego de veículos infligiria à indústria automobilística. Muito antes de qualquer juízo moral, a loucura aqui já reside no fato de considerar duas coisas totalmente distintas – a saúde dos indivíduos e os interesses da indústria – por um único parâmetro quantitativo, além do mais totalmente abstrato, isto é, o dinheiro. Observa-se, então, a veracidade da afirmação marxiana segundo a qual “o valor de uso torna-se forma fenomênica de seu contrário, do valor” (9). Aqui a abstração se tornou real. De fato, é evidente – ainda que Debord não faça explicitamente essa distinção – que não se trata da abstração no pensamento, da abstração filosófica, mas da “abstração real” (Sohn-Rethel). Não se trata do “falso” reflexo da realidade nas mentes humanas, mas de uma realidade “falsa”, porque privada de suas qualidades concretas e em que as abstrações (por exemplo, o trabalho abstrato, transformado em valor e, depois, em dinheiro) tornaram-se realidades materiais – por mais que seja difícil, para a consciência positivista, conceber que uma coisa possa ser, ao mesmo tempo, uma realidade e uma abstração. A abstração não é um mau hábito do pensamento que se cura substituindo as idéias falsas pelas verdadeiras, tampouco mudando as circunstâncias que geram tais idéias falsas, mas somente abolindo a real submissão do conteúdo concreto à forma abstrata. A predominância da imagem não é senão a expressão mais alta de tal abstração; como a técnica e a ciência, também a imagem é determinada pela socialização operada pela forma-mercadoria. O espetáculo é, pois, o processo em que as imagens se reconstituem num conjunto dotado – pelo menos aparentemente – da coerência que a realidade perdeu há muito tempo. A mercadoria reduziu tudo a simples quantidade; a qualidade existe somente como imagem apresentada a admiração aos espectadores.

Portanto, se para Debord o espetáculo não reconduz a uma lógica imanente própria da “imagem”, a “política” não é nem mesmo o pólo “positivo”, o pólo da intervenção consciente em condição de regular e limitar o pólo negativo, isto é, o reino da economia autonomizada de que o espetáculo é a tradução visível. Examinando os textos situacionistas dos anos 60, quando as ideologias e a ênfase sobre a “política” tinham chegado ao ápice, observa-se, antes de tudo, que os situacionistas evitam cuidadosamente chamar de “política” a própria atividade. Declaram, com frequência, rejeitar a “velha política especializada” e a “política entendida no sentido tradicional “. Em A sociedade do espetáculo, Debord acredita reconhecer os preâmbulos de um movimento revolucionário de tipo novo, baseado na “recusa da antiga política especializada, da arte e da vida quotidiana” (Sde, § 115). Na revista Internationale Situationniste, em 1964, fala-se: “As palavras ‘movimento político’ definem hoje a atividade especializada dos chefes dos grupos e partidos que obtêm da passividade organizada de seus militantes a força opressora de seu poder futuro. A I. S. não quer ter nada em comum com o poder hierarquizado, não importa sob que forma se apresente. A I. S., portanto, não é nem um movimento político nem uma sociologia da mistificação política”. Quer, ao contrário, contribuir para um novo movimento proletário de emancipação: “Fundada no princípio da espontaneidade das massas, tal atividade é incontestavelmente política, a menos que se negue esta qualidade aos próprios agitadores” (10). À questão “você participa ou não da política?”, os situacionistas respondem: “Sim, mas apenas de uma – trabalhamos… pela união e pela organização teórica e prática de um novo movimento revolucionário” para “ir além das falhas da velha política especializada” (11). Propõem “novas formas de ação contra a política e a arte” (12). Já no início, lembraram que “a meta dos revolucionários não é outra senão a supressão da política (o governo das pessoas que cede lugar à administração das coisas” (13) . Evidentemente, tal recusa da política não significa, absolutamente, uma renúncia à atividade, à “práxis”, nem deve ser entendida no sentido do velho anarco-sindicalismo que rejeitava toda ação política em favor apenas da luta sindical. Enquanto atividade separada dos outros setores da vida social e da existência cotidiana, e enquanto contemplação das ações dos outros em vez de um agir próprio, a política, para os situacionistas, representa uma alienação na mesma proporção que a arte. Um ponto central do programa situacionista era a tentativa de “superar” a arte, no sentido de realizá-la e suprimi-la ao mesmo tempo, em favor da “revolução da vida cotidiana” e da “criação contínua de situações”. Tal crítica situacionista da política como espetáculo encontrou, depois, durante os anos 70, muita repercussão nos movimentos sociais que transformavam vários aspectos da vida social, até então considerados “neutros” ou “privados” – habitação, transportes, meio ambiente, estruturas familiares etc. – em espaços de antagonismo social; isto continuou de forma domesticada nos anos 80 (movimentos alternativos, ecologismo etc.).

O “fim da política”, nos anos 60, era entendido pelos situacionistas como recusa da política, como sua desejada abolição ainda por se realizar através de uma intervenção externa, revolucionária. Ao invés disso, pouco depois começou o processo de autodestruição da política e que se tornou visível sobretudo nos últimos anos. Consequentemente, novas correntes de crítica social tornaram bastante mais explícito o fato de pôr em discussão a política enquanto tal, em termos que procuramos resumir aqui (14). Assim como os situacionistas constataram que a arte não precisava mais ser destruída mas já estava destruída – e por isso devia ser superada em uma forma superior -, também se pode, atualmente, constatar que a política já está destruída. Esta convergência no esforço para abater a vaca sagrada que é a “política ” demonstra, por outro lado, que as diversas críticas fundamentais da sociedade da mercadoria, ainda que tenham surgido em contextos e épocas distintos e tenham pontos de partida diferentes, estão destinadas a se encontrar.

A “política” não é um meio neutro, uma forma existente em cada sociedade e susceptível de ser preenchida por qualquer conteúdo, mas é uma forma específica em que se desenvolvem as relações entre os sujeitos de mercado. Trata-se de uma forma indirecta de socialização. Na sociedade baseada na produção de mercadorias, o elo social é exterior aos homens, pois estes não se socializam imediatamente na produção (15), mas apenas na troca que se desenvolve através da transformação de todo produto da atividade social em uma determinada quantia de trabalho abstrato. A democracia, evidentemente, é a forma mais completa de tal política porque corresponde àquela liberdade formal que é constitutiva da troca capitalista (diferentemente, por exemplo, do caso da servidão da gleba). A política é o “outro lado” necessário da sociedade da mercadoria, sem o qual esta se desagregaria imediatamente na anomia e na guerra de todos contra todos. É um vínculo externo, separado de seus portadores, alienado, que substitui o vínculo interno que, na sociedade pré-capitalista, era produzido juntamente com a produção material. Além disso, o Estado moderno, isto é, a política, assegura as infra-estruturas (transportes, educação, pesquisa etc. ) que são cada vez mais amplas e sem as quais a criação de valores não pode ocorrer, mas que, em si mesmas, não são produtoras de valor e que, em cada caso, superam as capacidades de investimento dos capitais isolados. O destino da política está preso à trajetória histórica da economia da mercadoria.

A espetacularização da política não é, absolutamente, sua saturação, mas é, ao contrário, o acabamento de sua lógica histórica. O mesmo processo que levou ao que se apresenta como uma invasão de imagens, isto é, a completa penetração da lógica do valor, da abstração, em todos os setores da vida social, também tornou supérflua a “política” com P maiúsculo. Porém não no sentido idílico de que agora seria possível passar a uma simples “administração das coisas”, mas no sentido de que, progressivamente, tira-se o terreno em que se apoia a política. O contínuo aumento das despesas com infra-estruturas, assim como o término do último boom capitalista – o fordista – e a rápida diminuição, graças sobretudo à revolução microeletrônica, do trabalho verdadeiramente “produtivo” no sentido capitalista (isto é, produtivo de valor de troca, o que quer dizer capaz de utilizar a força-trabalho segundo os padrões do mercado mundial) comportam um esgotamento da substância de valor e portanto, de modo muito banal, dos “fundos” disponíveis. Sem meios financeiros e por causa disso, o Estado perde facilmente suas possibilidades de intervir nos processos de reprodução. A decadência mundial da política enquanto instância reguladora da vida social expressa-se de diferentes modos: como rejeição da política e das ideologias por parte dos “cidadãos”, como perda de soberania por parte dos Estados nacionais, como redução neoliberalista das competências do Estado. A política tem sido redimensionada para esse papel indispensável, mas subordinado, que a caracteriza estruturalmente na sociedade da mercadoria, mesmo se, há algumas décadas, as necessidades conexas à fase ascendente de tal sociedade (superação das formas pré-capitalistas, integração de toda a população à lógica da mercadoria) tenham podido, temporariamente, fazer com que o papel da política parecesse maior. A “espetacularização” da política, a substituição do argumento pelo spot publicitário e do programa de governo pela tentativa de aparecer com a maior freqüência possível na televisão, são apenas aspectos mais visíveis dessa mudança que marca a época. A política não goza mais de nenhuma autonomia ou liberdade de decisão, mas está reduzida à política econômica e a um só tipo de política econômica: o esforço, muitas vezes desesperado, para manter a competitividade do próprio país nos mercados mundiais. As diferenças entre as forças políticas se reduzem, então, quase a zero; não se trata, pois, de uma degeneração mas, sim, de algo inteiramente lógico, se o sorriso telegênico de um aspirante a homem político vale mais que suas promessas, irrealizáveis contudo.

O ininterrupto retroceder da política diante das forças desencadeadas pelo mercado mundial e diante da autodestruição da sociedade assim encaminhada, torna, é claro, completamente inútil e ingênuo o misto de moralismo e de keynesianismo, proposto continuamente pelo irmão inimigo do neoliberalismo, quer dizer, pelo resto da esquerda. Esta, moderada ou “radical”, continua a querer impor de forma voluntarista, por meio da política, regras à sociedade da mercadoria. No entanto, nunca soube compreendê-la ou combatê-la enquanto totalidade social. A retirada do Estado de amplos setores da reprodução social não é fruto da diabólica estratégia de um suposto mega-sujeito chamado “capital”, entendido como um círculo de pessoas capazes de ditarem leis à história, mas é o resultado inevitável de um processo que a esquerda se recusa a enxergar: a crise global de algo que ela não quer, absoluta- mente, reconhecer como problema – o dinheiro e a mercadoria. Em vez disso, exatamente a globalização e o neoliberalismo é que demonstraram que não se pode mais modificar as categorias básicas da sociedade da mercadoria, visto que cada medida política a expensas do capital num determinado país apenas o induz a deslocar-se para outro lugar.

Entretanto, o triunfo do neoliberalismo, aparentemente mais “realista” enquanto quer libertar a “mão invisível” do mercado dos obstáculos da política, não dura senão um breve momento histórico. É semelhante ao entusiasmo de quem se inebria com a velocidade de um carro que, na verdade, está em queda livre num despenhadeiro. A alternativa para a extinção gradual da política não é, certamente, o automatismo do mercado. A reflexão sobre a política deve tornar-se uma reflexão sobre o fim da política e sobre a forma de totalidade da sociedade moderna, isto é, a forma-mercadoria. O fato de que constitua, para a consciência burguesa, uma “forma a priori” aparentemente natural e auto-evidente, nunca percebida conscientemente, não impede que ela condicione toda a vida “política”.

Os situacionistas é que começaram a pôr a “política” em discussão, ainda que, no que se refere a outros aspectos, tenham participado do clima de efervescência política de 1968; por exemplo, da exaltação da “autogestão” e dos “conselhos operários”. Frequentemente, tal temática tem sido uma ilusão pois, enquanto continuarem a existir a economia da mercadoria e o dinheiro, também a mais radical autogestão, mesmo que realmente livre de toda deformação burocrática, obedecerá às mesmas lógicas às quais se deve conformar qualquer sujeito económico. É constitutivo dos sujeitos do pensamento burguês acreditarem-se “livres” e fazerem abstração de todas as coerções que derivam das leis das entidades fetichistas que a sociedade criou sem saber e sem querer. O valor e sua expressão tangível, o dinheiro, são formas a priori que estão acima de cada vontade consciente dos sujeitos, a qual se expressa de uma forma já determinada – a cujas leis é necessário, pois, conformar-se – isto é, como exigência de dinheiro ou de poder político. A maior liberdade na esfera política e a mais radical “democracia” são vazias quando não podem aportar outra coisa além da execução das leis cegas do automovimento da economia. Tais leis, para dizer mais uma vez, hoje não decorrem de necessidades iniludíveis que derivam da “troca orgânica com a natureza”, mas da deformação especial que a forma-valor imprime às forças produtivas. Influenciar “politicamente” os efeitos do trabalho abstrato e do dinheiro sem superar sua lógica de base nunca foi possível estruturalmente; os esforços que houve nessa direcção foram apenas uma ação corretiva nos anos, já passados, em que uma massa ainda crescente de valor permitia alguma medida redistributiva. Se, realmente, a sociedade fosse capaz de ditar leis à sua economia em vez de as receber dela, não se trataria mais de uma sociedade fetichista. Porém, se a economia da mercadoria é retirada da vontade dos sujeitos, então ela é igualmente inatingível pela forma política que pode assumir tal vontade. Os situacionistas, pleiteando a abolição do dinheiro, do valor de troca, da mercadoria e do Estado, seguiam uma linha de princípio muito além da ilusão politicista, focalizando o essencial do problema.

Debord distinguia, em 1967, duas formas de espetáculo: o “espetáculo concentrado” dos regimes totalitários – stalinismo, fascismo, regimes militares dos países “em via de desenvolvimento” – onde cada um é obrigado a identificar-se com uma ideologia imposta de modo policialesco, e o “espetáculo difuso” das sociedades ocidentais, baseado em uma ampla escolha de mercadorias em que o indivíduo é levado a ver sua felicidade. Nos Comentários, de 1988, Debord observa que a sucessiva evolução levou, no mundo todo, ao predomínio de uma combinação desses dois tipos, o que chama de “espetacular integrado”. Este se baseia na vitória generalizada do espetáculo difuso, mas sem desdenhar o aporte das técnicas autoritárias e manipuladoras desenvolvidas pelo espetáculo concentrado. O espetacular integrado é ainda mais perfeito que seus predecessores, pois invadiu toda a sociedade, remodelando-a segundo as próprias exigências e destruindo até os últimos restos de realidade autônoma em seu interior, como foram, um dia, o sindicalismo ou os jornais, as cidades ou os livros (16). O espetáculo pode fazer os indivíduos, isolados e privados de qualquer acesso independente ao mundo, acreditarem no que ele quiser, visto que não existe mais possibilidade de verificação. Não havendo mais inimigos a temer, o espetáculo integrado pode se desvencilhar dos modos de repressão muito dispendiosos e permitir-se uma fachada de democracia. Mas enquanto a democracia burguesa clássica dos tempos pré- espetaculares correspondia, em parte, efetivamente a esse elemento de liberdade que afirmava ser, a democracia espetacular é, no fundo, o pior totalitarismo. Ela “est une société parfaite pour être gouvernée; et la preuve, c’est que tous ceux qui aspirent à gouverner veulent gouverner celle-là, par les mêmes procédés”. Como não pensar imediatamente, lendo essas páginas de Debord, nas mudanças ocorridas nos últimos 15 anos, na América Latina? (17) Debord não se refere a elas explicitamente, mas suas teses são confirmadas pelo modo como, não obstante a ausência de pressão popular significativa, os poderes claramente ditatoriais na América Latina abandonaram o palco. A democracia espetacular é plenamente realizada quando os intelectuais de esquerda são livres para discutir Marx na imprensa ou na televisão, e quando os cidadãos têm o direito de votar em um presidente de esquerda – que, caso fosse eleito, seria forçado a assumir a espantosa tarefa de adequar o país ao mercado mundial enlouquecido (18) – enquanto outros cidadãos mais desafortunados, porque moram nas ruas, ou nas selvas onde se deve exercitar o livre mercado, são tratados com métodos que poderiam provocar saudades dos tempos menos “democráticos” (19) .Hoje, a liberdade política pode conjugar-se perfeitamente com a mais feroz repressão social. A descrição que Debord faz das redes secretas, que administram, com desprezo total pelas leis burguesas, todas as questões da sociedade sem aparentar que o fazem, parece particularmente adequada à América Latina. Aqui se vê também o quanto o poder político visível já é uma carcaça vazia, incapaz de se fazer ouvir tanto por um banco quanto por um comissariado de polícia, e o quanto sua conquista é, então, inútil. Compreende-se por que os golpes de Estado de antes, com tantos tanques blindados cercando o palácio presidencial, não estão mais na moda (20). Não por acaso, todas as sociedades modernas reivindicam, diferentemente do que fazia ainda o nazismo, ser democráticas; até o General Pinochet que, mais do que abolir a democracia, queria “banhá-la toda em sangue”.

Mas a oposição à democracia espetacular não pode mais, certamente, se desenvolver sob a insígnia da luta pela “verdadeira democracia”. Quando reduziu todo o seu programa à palavra de ordem da “democratização” e dos “direitos humanos”(21) – eventualmente com a desculpa e que, em certos países, isso já representaria um avanço notável em relação a formas anteriores de dominação – a esquerda demonstrou mais uma vez sua disponibilidade para cair em todas as ratoeiras e para se propor como alternativa para a gestão do sistema da mercadoria. O fim da política caminha pari passu com o fim do que habitualmente se chama de “democracia”. Os movimentos anticapitalistas e revolucionários sempre acreditaram que o capitalismo era incompatível com a democracia – até Marx, num certo momento, julgou que o capitalismo não poderia sobreviver à introdução do sufrágio universal – e viram, em cada progresso da liberdade e da igualdade, em cada concessão de “direitos” a novas categorias da população, um território arrebatado ao domínio burguês, uma conquista a ser defendida obstinadamente contra as inevitáveis tentativas de anulá-la. Porém, com essa luta, os movimentos democráticos, mesmo os mais radicais, não fizeram senão ajudar o capitalismo moderno a superar seus resquícios ainda pré-burgueses e quase feudais, baseados nas imutáveis diferenças das castas sociais. Esses resquícios sobreviveram por muito tempo ainda. O movimento operário e as outras forças que atuaram pela democratização pensando combater o sistema capitalista – e devendo, efetivamente, topar com seus representantes empíricos – impeliram-na, de modo involuntário, rumo à sua forma acabada que prevê exatamente a igualdade e a liberdade abstratas de todos os sujeitos de mercado. A democracia espetacular é a conseqüência lógica da única democracia possível na sociedade da mercadoria, isto é, a democracia dos vendedores de mercadorias, livres e iguais. Enquanto a sociedade inteira for governada pelas leis cegas de uma economia autonomizada, qualquer que seja a forma de administração “política” da sociedade continuará sempre obrigada a seguir o “Diktat” que impõe o desenvolvimento da mercadoria. Uma democracia num sentido completamente distinto, entendida como uma sociedade que faz conscientemente a própria história e que terá reconduzido todas as suas criações – a economia, a política, a religião etc. – à decisão em comum, ao invés de ser por elas governada, só será possível depois de haver superado a subordinação da atividade humana à forma-mercadoria.

Se o fim da política não é assumido conscientemente como tarefa e como possibilidade de se libertar de uma categoria fetichista, o risco é que a política será substituída por formas ainda piores. Não, é claro, por um novo fascismo, mas por uma nova barbárie, por uma “economia da pilhagem” como último estágio do mercado livre. O fim lógico da sociedade da mercadoria é a desintegração até a guerra de bandos, a máfia, até o comprometimento violento dos últimos restos de riqueza ainda em circulação. Ao final de sua evolução, o Estado tende a se transformar novamente naquilo que era no início: um bando armado. O exemplo iugoslavo é eloquente.

É necessário que os até agora poucos filões de crítica radical da sociedade da mercadoria se encontrem e encontrem seu público. Só uma crítica desse tipo é “realista”, visto que a sociedade da mercadoria pode talvez ser abolida, mas não mais ser reformada, como demonstra-se a cada dia. Só uma crítica como essa pode reivindicar o fato de ter sabido se valer das intuições mais profundas de Marx. De outro modo, o descontentamento, que cresce a cada dia diante das loucuras da economia autonomizada e dos desastres ecológicos, pode ser recuperado por forças interessadas apenas em canalizá-lo para formas impotentes. As diversas igrejas já estão à espreita para propor seus remédios. Mas também já se disse: “É possível enganar alguém durante todo o tempo. É possível enganar a todos por algum tempo. Mas não é possível enganar a todos durante todo o tempo”.

Tradução do original italiano por Iraci D. Poleti. Publicado na Revista Praga, n° 4, 1997. Texto revisto pela própria tradutora.

* ARAPUCA: (do Tupi, Brasil) Armadilha para pássaros; (fig.) casa esburacada (Nota dos editores da página)

1 O texto de Marx em questão – O dezoito Brumário de Napoleão Bonaparte – é, por outro lado, aquele em que se encontra a famosa frase que diz que as tragédias da história se repetem como farsa.

2 Na Itália, depois da vitória eleitoral de Berlusconi, em 1994, obtida em parte graças ao trabalho de propaganda realizado por seus canais de televisão privados, foram propostas, e em parte promulgadas, leis que pretendem assegurar a todos os concorrentes políticos um acesso adequado à mídia, também privada.

3 Guy Debord, A sociedade do espetáculo, Contraponto, Rio de Janeiro, 1997; (A Sociedade do Espectáculo, Mobilis in Mobile, Lisboa, 1971 – nota dos editores da página); daqui em diante, Sde.

4 Incluído na edição brasileira de A sociedade do espetáculo. (Comentários sobre a Sociedade do Espectáculo, Mobilis in Mobile, Lisboa, 1995 – nota dos editores da página)

5 De fato, recentemente se viu, na Itália, chegar ao cargo de diretor de um dos canais da televisão estatal um personagem que, há tempos, declara em alto e bom som sua admiração por Debord e recomenda aos telespectadores que leiam A sociedade do espetáculo para se protegerem melhor contra a televisão: mais ou menos como o criminoso arrependido pode ser um ótimo tira ou como um passado de universitário marxista não prejudica em nada uma grande carreira política sob a bandeira do neoliberalismo.

6 Realmente, nos últimos anos, se fala mais do que nunca de Debord e dos situacionistas mas, em geral, apresentando-os como uma simples vanguarda artística, ou como um fenômeno de admirável estilo literário, ou como precursores de 1968; porém, quase nunca se lhes reconhece uma crítica radical, de base marxista, do mundo atual.

7 Cópia extremamente mal resolvida de André Malraux, Debray, na trajetória que o levou de pseudoguerrilheiro a conselheiro de todos os presidentes, não deixou de lucubrar uma pomposa “midiologia”, ela própria muito midiática (Vida e morte da imagem, Vozes, Petrópolis, 1994; Manifestos midiológicos, Vozes, Petrópolis, 1996).

8 Guy Debord, Comentários sobre a sociedade do espetáculo, cap. VIII.

9 Karl Marx, O Capital, v. 1, p. 59. São Paulo: Ed. Abril, 1983.

10 Internationale situacionniste, n° 9, 1964, p. 24.

11 Idem, n° 9, p. 42.

12 Idem, n° 11, 1967, p. 32.

13 Idem, n° 2, 1958, p. 9.

14 Uma análise desse processo, a qual levamos em consideração neste artigo, encontra-se sobretudo nos textos de Robert Kurz e da revista alemã Krisis. No Brasil, foram publicados: Robert Kurz, O colapso da modernização, São Paulo: Paz e Terra, 1992; O retorno de Potemkin, São Paulo: Paz e Terra, 1993, e Os últimos combates, Petrópolis: Vozes, 1997.

15 Para ser mais preciso: hoje, a produção é diretamente socializada no plano material (qualquer produção pressupõe infra-estruturas enormes). Porém, não o é no plano social, pois o horizonte do sujeito econômico nunca são a sociedade e suas necessidades, tampouco as próprias necessidades reais, mas apenas a criação de valor de troca acima de qualquer consideração quanto às conseqüências.

16 Guy Debord, Comentários sobre a sociedade do espetáculo, cap. XXIX.

17 Sem esquecer que a inesperada conversão dos países do leste a um tipo bastante particular de democracia – e o papel que os serviços secretos e diversas mistificações desempenharam nessa mudança – trouxeram, de repente, uma notável confirmação às análises de Debord.

18 Quando, em tempos de crise, os donos da sociedade permitem que a esquerda se aproxime do poder, pensam, talvez, na máxima de Baltazar Gracián: “Le médecin adroit, qui n’a pas réussi à la guerison de son malade, ne manque jamais d’en appeler un autre qui, sous le nom de consultation, I’aide à soulever le cercueil” (cito uma tradução francesa que tenho em mãos. Trata-se do § 258 do Oráculo manual).

19 Debord observa, em Comentários sobre a sociedade do espetáculo, cap. XVIII, que “sabe-se… o que são os esquadrões da morte no Brasil”.

20 Debord sublinha que o papel de vanguarda que a Rússia e a Alemanha tiveram na formação do espetáculo concentrado, e os Estados Unidos na do espetáculo difuso, parece ter cabido, no que diz respeito ao espetáculo integrado, à França e à Itália (Comentários sobre a sociedade do espetáculo, cap. IV). Quanto a isso, Debord também poderia ter citado o México. A partir dos anos 20, quando o espetáculo mundial estava apenas ensaiando os primeiros passos, uma férrea oligarquia conseguiu, nesse país, governar mantendo um jogo de regras democráticas, com alguma eleição aqui e acolá pela oposição, com uma margem de liberdade de opinião e de organização desconhecida em outros países latino-americanos, e apoiando, no âmbito da política externa, governos e movimentos revolucionários. Com tudo isso, aquele partido de nome tão eloquente exerceu um controle da sociedade bastante mais perfeito do que seus colegas conseguiram fazer em outros países, mantendo-se no poder por mais tempo do que qualquer outro regime político neste século. E é bem conhecido que soube também recorrer a outros métodos quando necessário, bem como soube apagar as marcas disso com uma habilidade digna do espetáculo integrado que ainda não havia sido instaurado. Debord alude a isso, aliás, em Comentários sobre a sociedade do espetáculo, cap. XXVIII.

21. Também além do fato de que o enfatizar a “democracia” se tornou em muitos países, principalmente na Itália e na França, o último refúgio de académicos de esquerda e de velhos stalinistas que não se converteram, a tempo, em heideggerianos ou popperianos, e que devem ter, porém, algum cavalo de batalha para evitar que sejam excluídos dos debates de televisão.