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A ILUSÃO DO ESTADO MUNDIAL

Ernst Lohoff

1.

A ditadura universal das mercadorias e do dinheiro explodiu o quadro da autonomia regional ou local e produziu um contexto global mundial. Se o internacionalismo era para os nossos predecessores um ponto de honra tornou-se para nós uma realidade do dia a dia independentemente de qualquer valoração moral. Quem hoje em dia andar numa bicicleta de marca “alemã” pode estar certo de que os seus componentes foram fabricados em pelo menos dez estados diferentes, por trabalhadores de setenta nacionalidades diferentes. Uma famosa cadeia mundial de restaurantes de comida rápida anuncia com toda a seriedade que os seus produtos têm absolutamente o mesmo sabor em todas as suas filiais, de Buenos Aires a Moscovo ou a Holzminden. Todas as indústrias contribuem conjuntamente para a destruição da floresta tropical e para a produção do buraco do ozono. As regiões mundiais formam há muito, no que diz respeito à economia, à ecologia e à cultura do quotidiano um sistema de vasos comunicantes.

Esta indiscutível constatação conduz a uma conclusão. Se os estados nacionais, confrontados com a impossibilidade de controlar ao nível mundial os fluxos financeiros, populacionais e de poluição ambiental, atingiram hoje inegavelmente o limite das suas capacidades de intervenção, não devem as organizações internacionais, como a União Europeia ou as Nações Unidas, mais tarde ou mais cedo, tomar o seu lugar?

2.

Ainda não há muito tempo, os apologetas da sociedade de mercado e democracia e os seus últimos críticos estavam largamente de acordo quanto a este prognóstico. Entretanto, o modelo da “nova ordem mundial” ficou paralisado muito antes da sua concretização. Do teste da Guerra do Golfo, passando pelas conversações do GATT até à Conferência do Rio, a propalada “política interna mundial” só apresentou resultados ridículos. As forças centrífugas revelam-se mais fortes do que as de união. Os Estados nacionais não se transformam em unidades políticas de grau superior; pelo contrário, no Sul e no Leste, viram-se uns contra os outros.

A desilusão é quase sempre um bom terreno para a memória. Na perspectiva da desmontagem antes do tempo da “nova ordem mundial” tornar-se-á porventura claro como a ideia do “one world” é pouco original. Concepções e prognósticos de unificação (incluindo o estado mundial) apareceram continuamente ao longo dos últimos três séculos, mas o desenvolvimento real desmentiu-os sempre. Já para o iluminismo do Século XVIII orientado para o cosmopolitismo a ideia do “estado mundial” foi naturalmente uma ideia fixa e um projecto para o futuro, e apesar disso a sociedade burguesa constituiu-se sob a forma de estados nacionais perfeitamente delimitados face ao exterior. No início do nosso século os protagonistas do imperialismo clássico partiram do princípio de que, no futuro, só os grandes blocos imperialistas fechados sobre si mesmos poderiam sobreviver na luta entre as potências. A criação do mercado mundial, esperava-se, simplificaria imediata e solidamente o mapa político da Terra. Os críticos marxistas partilharam esta perspectiva. O ideólogo-chefe dos social-democratas, Hilferding, previa até que se constituísse no futuro um único Estado imperialista à escala mundial. A realidade no entanto não se presta nem de leve a estas extrapolações. Quando Hilferding em 1910 deu à luz o seu prognóstico havia duas dúzias de estados nacionais a ornamentar a Terra; setenta anos mais tarde seriam seis vezes mais. No momento da queda da ordem bipolar instaurada após a segunda guerra mundial esta tendência histórica ainda se acentuaria mais. Nunca como agora existiu uma tão grande interdependência entre as regiões do globo, e nunca o número de entidades independentes existentes no mundo foi tão elevado como na próxima semana.

O desmentido que o desenvolvimento real deste último século representa deve ser compreendido e não pode ser simplesmente atribuído aos erros e acasos dos processos de decisão política. Ele levanta antes uma suspeita. Talvez o tão propalado “one world” não tenha apenas que defrontar-se com dificuldades de percurso que estadistas de nível mundial com visão poderiam ultrapassar. Provavelmente está condenado a ficar sempre como fantasma porque o seu fracasso tem na sua base uma lógica interna imperativa. Possivelmente, o estatismo e a política modernos estão tão intimamente ligados ao Estado nacional como outrora a Democracia antiga à Polis.

3.

Esta suposição pode ser corroborada. O mercado mundial torna os produtores interdependentes, mas não no sentido de uma formação de interesses comuns e de uma progressiva igualização das condições de vida. Pelo contrário, a crescente interdependência vai de par com uma crescente desigualdade. Na medida em que prosseguem apenas os seus próprios interesses, os vencedores na luta da concorrência colaboram, quer queiram quer não, na miséria dos perdedores. A sua situação relativamente confortável assenta na contínua externalização e no anonimato de todas as consequências originadas pelo processo cego da valorização do capital em que triunfaram. O capital isolado externaliza o seu lucro extra, na medida em que impede as possibilidades de realização dos outros capitais e os arruina; e aumenta tanto mais quanto mais os seus custos puderem ser transferidos para outros. Enquanto de um ponto de vista puramente económico os concorrentes derrotados no terreno têm que apresentar a factura ao mercado de trabalho e aos seus próprios trabalhadores, os custos ecológicos cada vez mais dificilmente quantificáveis da produção da riqueza abstracta ficam como de costume a cargo de uma generalidade não determinável de pessoas.

A intervenção do Estado estabelece no interior da entidade política alguns limites a este mecanismo inerente à produção de mercadorias. À ruína precoce da mercadoria força de trabalho opõe-se a regulamentação legal das condições de trabalho; o Estado garante aos seus cidadãos através da distribuição monetária um padrão mínimo de vida; a destruição dos recursos naturais não é selvagem, mas canalizada e realizada no quadro da regulamentação legal e das disposições excepcionais. Esta função regulamentar não torna o Estado e a Política uma força contrária à lógica da produção de valor e de externalização. O Estado coloca diversos freios ao capital, mas, como entidade autónoma separada existente ao lado da “economia”, ele pressupõe a valorização do capital cada vez mais como seu próprio fundamento. Já do ponto de vista financeiro o sucesso do Estado-Fisco depende do sucesso dos capitais que operam no seu território. O Estado atentaria contra a sua própria base se quisesse colocar-se contra a externalização dos custos sem consideração sobre a capacidade concorrencial dos capitais locais. Se o mercado mundial produz inevitavelmente vítimas, perdedores e danos e se a Política reconhece a priori a forma da mercadoria, do dinheiro e do mercado mundial, então tem igualmente de dar de barato as consequências do processo de valorização do capital. Não pode seriamente colocar-se contra os custos da produção abstracta de riqueza, mas tem que lutar por ser bem sucedido na sua partilha ao nível global. O Estado cumprirá bem a sua tarefa pré-determinada quando conseguir limitar o melhor possível os prejuízos da valorização do capital sobre o seu território e desviar os seus plenos efeitos do âmbito da sua soberania.

A lógica segundo a qual as intervenções do Estado no interior se transformam no veículo da externalização transnacional dos custos é fácil de exemplificar.

Os legisladores da Europa Ocidental consideraram necessário intervir normativamente no mercado de trabalho. As disposições legais do direito do trabalho protegem os trabalhadores em determinadas formas de cessação prematura do trabalho e na doença. As formas de exploração humana no trabalho só desapareceram realmente nos sectores em que o desenvolvimento técnico as tornou obsoletas. Pelo contrário, nos sectores produtivos em que elas ainda são funcionais para a valorização do capital ao nível da produtividade actual manifestam-se na periferia as mesmas ou mesmo novas condições propícias à exploração de mão de obra. A florescente indústria electrónica e de computadores emprega no Sudeste Asiático dezenas de milhares de mulheres jovens na montagem de circuitos. Esta actividade de filigrana conduz rapidamente a uma séria danificação da vista e muitas vezes à cegueira. A utilização de substâncias químicas leva também a que as trabalhadoras, ao cabo de poucos anos, fiquem fisicamente arruinadas. Na Europa Ocidental semelhantes condições de trabalho não são permitidas. Elas desapareceram das metrópoles, para que os sujeitos monetários aí possam fruir os produtos deste trabalho na forma de importações, sem terem de ser confrontados com as vítimas desse trabalho e com os danos respectivos. A saúde arruinada da trabalhadora não aparece como custo em nenhum sistema de saúde ou de segurança social no Ocidente e os produtos deste trabalho são muito naturalmente integrados no processo de valorização do capital. No mundo do comércio livre nenhum poder pode impedir esta glorificada “divisão do trabalho internacional” e muito menos a política dos estados.

Esta externalização da destruição não atinge apenas a base humana da produção de riqueza, mas também a sua base natural. Como a liberdade de comércio é na prática sinónimo da liberdade do centro capitalista, os países capitalistas desenvolvidos monopolizam automaticamente o essencial dos “bens livres” da Terra. Em contrapartida, os parentes pobres do Sul participam plenamente como cidadãos do mundo na destruição e na fruição das substâncias poluidoras, etc.

Que as intervenções legislativas e políticas para interromper esta lógica são insuficientes é demonstrado não apenas pela política das chaminés das fábricas nos anos sessenta, mas precisamente por um fenómeno como a exportação do lixo hoje em dia. A maquinaria alemã de valorização do capital ameaça todos os anos sufocar com o seu próprio lixo. O estado federal alemão reage de forma imperativa à emergência criada pelo lixo, mas reage naturalmente de modo conforme ao mercado. Devido à oposição das populações torna-se difícil encontrar novos locais para lixeiras. A solução de atirar o lixo todo para a atmosfera não é aceitável como solução geral. Os custos do “enterramento” dos lixos são por isso crescentes. A consequência não é a diminuição da montanha do lixo. O lixo corre, como se posto em movimento por uma mão invisível, de acordo com o mais baixo preço, para fora das fronteiras, precisamente para onde lhe são oferecidas melhores condições para o despejo.

Por trás do escândalo esconde-se o sistema, mais precisamente a imposição sistémica. Até uma criança, quanto mais os especialistas, sabe que o problema do lixo não está no seu despejo. Ele só pode ser resolvido através de alterações no modo de produção do lixo. O objectivo da diminuição do lixo tem de ser integrado no planeamento dos produtos e da produção. Mas ao Estado está vedada ex definitione a intervenção neste sistema. Ele vive do processo cego de criação de valor da maquinaria capitalista, e esta só faz sentido para a criação abstracta de riqueza e não de um ponto de vista material qualitativo. Qualquer consideração sobre os factos ecológicos só pode consistir da parte do Estado em leis gerais e abstractas outorgadas de forma burocrática. Se o Estado quisesse controlá-los efectivamente estrangular-se-ia a si próprio.

4.

A ligação do Estado com a imposição da externalização atinge ainda um nível superior. O poder político não tem apenas de ter em atenção um facto externo, a economia, e colocar-se ao serviço da externalização dos custos; o modelo moderno de Estado é ele próprio um resultado da lógica da externalização.

A competitividade no mercado mundial nas sociedades actuais não depende apenas de factores ao alcance dos capitais privados. A possibilidade de sucesso das empresas privadas no mercado mundial depende em igual medida das condições gerais da sociedade. Uma rede eficaz de transportes e um sistema funcional e abrangente de telecomunicações são tão importantes para o processo de valorização como o estado do sistema educativo e da administração do país. Todos estes diversos domínios constituem condições incontornáveis de uma produção de mercadorias desenvolvida, mas não são susceptíveis de ser organizados, ou só muito limitadamente, na forma da mercadoria. E por isso caem na esfera da competência do Estado.

Por muito importantes que sejam estas funções para o processo de valorização, elas entram simultaneamente do lado dos custos. O Estado moderno existe dualmente, como investidor e como cobrador de impostos e não consegue furtar-se a este dilema. Se descurar o seu investimento na infra-estrutura por razões ideológicas ou outras isso acabará por ter um efeito relevante na competitividade da economia nacional. Os Estados Unidos e a Inglaterra de Thatcher são um exemplo assustador desta realidade. Se engordar com impostos, torna-se um obstáculo ao processo de acumulação. Quanto este aspecto, com o desenvolvimento das forças produtivas, adquire relevância para o processo de acumulação, pode ver-se na evolução do peso do Estado no produto social bruto. Se a quota do Estado no princípio do século nos países mais desenvolvidos se situava abaixo dos 10%, situa-se hoje nos mesmos países no limiar dos 50%. A actividade do Estado torna-se um factor decisivo na concorrência capitalista.

O moderno Estado intervencionista só consegue provar eficiência se lhe for possível produzir um elevado grau de homogeneidade interna. O autolimitado Estado liberal “guarda nocturno” do século XIX ainda estava em condições de unificar sob o mesmo tecto político partes do território com desenvolvimento divergente. No Estado actual, em contrapartida, que tem de enfrentar uma extensa frente de prestações infra-estruturais e de criar com a sua política monetária e fiscal o quadro das condições do processo de valorização, actuam destrutivamente graves desníveis económicos. As formas das actividades estatais, das condições socio-políticas aos investimentos nas infra-estruturas, da justiça à política económica e monetária, nunca são as adequadas para o domínio da valorização capitalista, que se situa num plano social completamente diferente. A optimização das condições de valorização capitalista no plano da divisão internacional do trabalho identifica-se com a adaptação das políticas económicas e sociais nacionais às condições de um segmento específico do processo de valorização. Um país como a Coreia do Sul, que, como ex-colónia, procura a sua integração no mercado mundial como simples exportador de matérias primas e de produtos agrícolas, pode dedicar-se nas décadas de 60 e 70 apenas à produção de bens de consumo de massa de baixo preço, que não exigiam grandes condições sociais de base. Tinha de se contentar com os meios que tinha à mão: baixos salários e mão de obra não qualificada e disciplinada. A criação de uma rede ampla de segurança social teria sido, nestas condições, um erro crasso de investimento, tal como a imposição de mais impostos para a investigação fundamental. Para um país como a República Federal da Alemanha a situação perspectiva-se de forma completamente diferente. Nos sectores de produção em que os países emergentes do Extremo Oriente atingiram sucesso (aço barato, construção naval…) os capitais alemães, confrontados com custos infra-estruturais mais caros e com custos sociais mais elevados, não podiam aguentar. Os custos e o nível social que nestes sectores funcionam como desvantagem são no entanto uma vantagem nos sectores onde o elevado nível social pode ser utilizado como lucro. A RFA tem, relativamente aos países emergentes vantagem nos domínios da high-tech e nos sectores em que a maquinaria organizada e funcionando continuamente num complexo que excede em muito a empresa individual tem um peso muito superior ao trabalho mecanizado directo. Em vez de baixar os salários e os custos das infra-estruturas ao nível sul-coreano o Estado alemão tem de esforçar-se por reproduzir o seu modelo de sucesso.

O imperativo no sentido de uma determinada política económica nacional institucionalizada é dificilmente compatível com a existência de regiões atrasadas. As regiões pobres dentro de um país estão duplamente excluídas da participação na maquinaria de reprodução do capital. Elas não estão em condições de participar nos sectores de alta tecnologia, pois para isso faltam-lhe partes das condições infra-estruturais, nem lhes está aberta a possibilidade de sucesso nos outros sectores em que vigoram menores exigências tecnológicas, pois nestes sectores é o nível elevado dos salários determinado pelas regiões desenvolvidas e o padrão legal e de segurança social, sempre aplicáveis ao nível nacional, que o impede. Estas regiões estão portanto prisioneiras da assistência social, e quanto mais acentuadas forem as discrepâncias entre as regiões, mais participarão apenas como beneficiárias nos fluxos de repartição. O frágil estado vencedor no mercado mundial tem de utilizar o seu instrumentário de redistribuição da riqueza para tentar vencer as diferenças de desenvolvimento interno.

O próprio processo de concorrência cria disparidades regionais. A eficiência do moderno Estado nacional depende no essencial da sua capacidade de nivelar estas disparidades, pois o capitalismo moderno carece de um espaço de funcionamento coerente. Esta gritante contradição só assume uma expressão prática quando muitas unidades políticas das que partilham a Terra empreendem, cada uma por si, esforços de homogeneização. Se virmos com atenção, revela-se na implosão catastrófica de estados uma determinada lógica que vai para além dos conflitos étnicos. Simultaneamente, a rapidez louca e a relativa impotência com que nos anos 50 e 60 se dissolvem os estados coloniais, saqueados durante 500 anos, é pouco surpreendente. Esta evolução aparece hoje a uma nova luz, tal como o facto marcante de precisamente os estados que perderam a segunda guerra mundial terem surgido depois no boom do pós-guerra como os grandes vencedores e terem dominado até hoje o mercado mundial. A renúncia forçada aos sonhos coloniais, a desesperada cura de emagrecimento que foi imposta ao Japão relativamente às suas possessões no continente asiático e à Alemanha relativamente aos seus territórios agrários do Leste, foram como uma mina para estes países capitalistas, porque lhes caiu do céu um grau de homogeneidade e de integração que as potências vencedoras, França e Inglaterra, só com muito esforço e mais tardiamente conseguiram atingir.

A mensagem é clara: a pobreza é irrelevante para o sucesso, desde que fique fora das fronteiras; mesmo um pouco de subdesenvolvimento dentro das próprias fronteiras torna-se um luxo muito caro. Uma péssima base para o modelo do Estado mundial e para o sonho de uma “política mundial”.

5.

O processo de externalização toca os seus limites. Começa a funcionar no vazio, na medida em que as consequências externalizadas, como de costume, se viram contra os próprios agentes da externalização. Isto passa-se hoje em larga escala. O buraco do ozono não se alarga já apenas sobre o hemisfério Sul, mas abre-se agora também sobre as cabeças dos produtores de CFC. A destruição da floresta tropical, desencadeada a favor dos importadores ocidentais de madeira, já não ameaça apenas o equilíbrio ecológico local, mas o global.

Não apenas os custos externalizdos do processo irracional de valorização dos capitais privados atingem como crise ecológica os ganhadores relativos. Os ganhadores estão confrontados com novas formas de insubmissão social. Os desenraizados pela vitória do mercado mundial, no Sul e no Leste, recusam-se a morrer à fome, tranquila e pacificamente em casa. Uma vanguarda quantitativamente ainda relativamente discreta bate à porta das metrópoles. Mas precisamente esta amostra dos movimentos migratórios futuros desencadeia o pânico e conduz à metamorfose do nosso sub-continente aberto ao mundo em “fortaleza Europa”. Os sujeitos monetários sem dinheiro introduzem-se na nossa prezada terra e a maquinaria de criação de valor da metrópole não se encontra em condições de os absorver. Os países da periferia não atingem o nível do Ocidente, as pessoas metem-se a caminho: Go West!

A resposta dos sujeitos monetários há mais tempo residentes não se faz esperar e só pode consistir no apoio à antiga externalização com fundamentos entretanto precarizados. O lado em crise da sociedade das mercadorias apareceu sempre como crise dos outros e assim deveria continuar sempre. A força dos factos não nos permite já evitar os custos humanos com os métodos habituais, assépticos e sem conflito, e em consequência cresce a tendência para introduzir na solução desta questão, se necessário, a utilização da força física directa. Pauperes ad portas! – é o grito de socorro no fim da modernidade. E os usufrutuários do Estado social juntam-se para a batalha armada. “Lutar contra a pobreza; expulsar os pobres”.

A tirania universal da sociedade da mercadoria transformou a respeitável abstracção “humanidade” em realidade palpável, mas não no sentido que lhe deram os seus defuntos criadores, na corrente do humanismo, mas antes como catástrofe social e ecológica. O domínio da sociedade burguesa realiza-se no auto-extermínio ecológico, enquanto as populações de todos os estados dominantes realizam, em vez da fraternidade universal, um “Progrom” dirigido contra todos os outros. O propalado “One World” realiza-se fatalmente na forma pouco edificante da guerra civil mundial e dos refugiados ao nível mundial.

6.

As formas de dissolução na barbárie da ordem burguesa e o ameaçador desastre ecológico fazem medo. E o medo manifesta-se em primeiro lugar, como é hábito ancestral, em exigências à Política. O mundo caminha cegamente para o abismo e a Política deveria intervir e mudar o destino. A classe política é culpada por se ter negado até hoje a este desafio e ter-se limitado a prosseguir os limitados interesses nacionais. Uma nova Política, orientada para os desafios mundiais, deveria substituir a antiga Política.

Numa sociedade em que a Política se identifica com o comportamento habitual da generalidade das pessoas, este impulso é perfeitamente compreensível. Mas, vistas bem as coisas, faltam-lhe os destinatários. O que está historicamente na ordem do dia não é uma política radicalmente diferente mas, muito mais radicalmente, a ruptura com o sistema da “Política” e do “Estatismo”.

Se a moderna sociedade mundial entra em crise, porque também os “vencedores” não conseguem subtrair-se duradouramente às consequências da sua vitória e porque a lógica da externalização conduz ao absurdo, então é a própria Política como forma de acção que atinge o seu limite. Uma “política interna mundial” pensada ciberneticamente e orientada para a solução dos problemas mundiais é pura e simplesmente uma contradição nos termos. A Política e o princípio da externalização confundiram-se, pois a acção política estatal, na medida em que a sua forma consiste no geral e abstracto, reconhece a priori a mercadoria e o dinheiro como os verdadeiros senhores do planeta. Como esfera especial separada das outras esferas da actividade social, a Política não precisa de se colocar deliberadamente ao serviço de quaisquer interesses capitalistas. Já a partir da sua forma própria, cabe-lhe ocupar-se com a síntese dos interesses monetários divergentes e negligenciar os restantes problemas com sentido deste mundo.

Quem se queixa do papel da Política poderia também mostrar-se desiludido por um elefante num ballet não desempenhar o seu papel de bailarina de modo completamente satisfatório.

Por detrás do desejo de “outra política” completamente diferente esconde-se outro e muito simples pensamento que apenas não se conhece a si próprio. O desenvolvimento cego da maquinaria da produção de valor libertou um potencial de destruição historicamente completamente novo. A relação do homem com a natureza ameaça ficar tão descontrolada como as hordas em conflito ao nível mundial. Perante este ameaçador pano de fundo, o que está em jogo é tomar decisões, conscientemente e sem ter em conta a lógica monetária e jurídica, intervir sempre que necessário e contra a corrente. Se nos territórios da antiga União Soviética as centrais nucleares completamente obsoletas não são desactivadas, porque isso implica uma ruptura imediata do fornecimento de energia, então a comunidade internacional tem de preparar-se para garantir o necessário fornecimento de energia, sem a intervenção do dólar ou do rublo. Se no chamado terceiro mundo as condições de subsistência são destruídas a favor de monoculturas exportadoras com as quais estes países conseguem obter divisas, então é preciso criar um novo e forte pragmatismo anti-monetário, que defenda que estes países possam obter, mesmo sem contrapartidas financeiras, pela primeira vez, todos os bens de importação que lhes são necessários. A gestão dos fluxos de bens que são recursos básicos deve emancipar-se do domínio do dinheiro.

Original Die Weltstaatsillusion em www.krisis.org

Tradução de José Paulo Vaz, 4/2002


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