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Out of Area – Out of Control

Sociedade da mercadoria e resistência na era da desregulamentação e desestatização (versão original 2004)

Deutsche Version [1]

Ernst Lohoff

1. A fatal vitória final da mercadoria

a) A falta de independência da política

Desde os primeiros dias da Primeira Guerra Mundial até os anos 70 era tido como consenso que somente uma economia de mercado modificada por intervenções estatais e marcada por contenções “sociais” teria futuro. Especialmente na época do boom do pós-guerra, todas as forças sociais e políticas representativas nos centros do mercado mundial compartilhavam dessa perspectiva. Nos anos 60, esse programa era chamado aqui de “Economia de Mercado Social”, enquanto que nos EUA era designado pelo rótulo “Great Society”. Em toda parte, estava fora de questão que o Estado deveria atuar como um contrapeso ao livre jogo das forças de mercado. Especialmente o Estado Social era festejado como sinônimo de modernidade e o termo “política reformista” designava, nos dois lados do Atlântico, nada mais que a sua enérgica expansão.

Entretanto, esse cenário modificou-se substancialmente. O leitmotiv do capitalismo globalizante reza desde os anos 80: “Onde hoje há Estado, deve se tornar mercado”. Principalmente o Estado Social, antes a mais alta representação do progresso, hoje é tido como sinônimo de atraso e fossilização. Como sabemos, nos centros do mercado mundial isso não fica somente na ofensiva ideológica. Desde a virada do milênio, na Europa continental, como antes nos EUA e na Grã-Bretanha, as conquistas sociais de décadas são atiradas ao mar com velocidade impressionante.

Os liquidantes do Estado Social e defensores da privatização e desregulamentação justificam seus esforços como sendo uma correção atrasada de mal-formações motivadas politicamente. A “regulamentação excessiva”, que junto com o “emaranhado do Estado Social” paralisa qualquer iniciativa privada, bloqueia o caminho para o crescimento e a prosperidade. A remoção desses impedimentos é urgente, conforme a ladainha dos ideólogos da economia de mercado.

Os defensores da regulamentação estatal e redistribuição social vêem as coisas de outra forma. Não as conquistas do Estado Social seriam o resultado de uma política errada e desinteressada no bem comum da sociedade do trabalho, mas sim a sua remoção. No entanto, apesar de as duas partes litigantes diagnosticarem o atual desenvolvimento de forma diametralmente oposta, suas interpretações seguem os mesmos parâmetros. Tanto uns como os outros vêem a regulamentação estatal obstinadamente como uma variável dependente unicamente de lutas e decisões políticas. As confusões das disputas políticas são apresentadas como sendo, em última instância, as únicas responsáveis por qual importância cabe ao Estado na produção e divisão da riqueza produzida pela sociedade de mercado.

A variante de esquerda dessa forma de argumentar todos conhecem: leis trabalhistas, diminuição de jornada de trabalho, aumento de salários, seguros de saúde, de desemprego e de aposentadoria foram conquistados ao capitalismo em duras lutas de classe. Hoje, “o capital” se aproveita da fraqueza da classe operária organizada para a revogação dessas concessões e para a reinstalação do “capitalismo de Manchester”.

De fato, o processo da formação do Estado Social recebeu das lutas do movimento operário impulsos substanciais. Da mesma forma, a liquidação do mesmo Estado Social não pode ser imaginada sem a obstinação selvagem de seus doutrinários coveiros neoliberais. No entanto, essa interpretação conduz ao erro na medida em que trata as decisões políticas como prima causa incondicionada. Com isso, o x da questão fica encoberto: os grandes projetos políticos constituem apenas formas de reação e elaboração a desenvolvimentos estruturais profundos, que estão além do alcance das decisões políticas. Os pais do Estado Social só tiveram tantos sucessos duradouros para mostrar porque eles acrescentaram ao sistema capitalista de produção de riquezas algo essencial à sua imposição e generalização. Também no caso do atual projeto de demolição trata-se de algo mais do que um desvio devido a condições políticas desfavoráveis; visto mais de perto, ele desmascara-se como uma conseqüente resposta intra-capitalista à fundamental crise estrutural de trabalho e valorização. A mudança de paradigmas políticos indica uma contradição interna fundamental da produção de riquezas pela sociedade da mercadoria; estatização e desestatização parcial podem ser concebidas como o percurso imposto por essa contradição interna.

b) Pequena economia política do setor estatal

Vamos começar pelo esclarecimento dessa relação contraditória, primeiramente em um plano bem elementar, qual seja, a questão do que se entende por riqueza sob a lógica capitalista. Uma resposta é dada por Marx logo nas primeiras frases do “Capital”: “A riqueza das sociedades em que domina o modo de produção capitalista aparece como uma ‘imensa coleção de mercadorias’e a mercadoria individual como sua forma elementar.” Essa proposição também pode ser lida como “missão histórica”. A sociedade capitalista é marcada pelo ímpeto de transformar a maior parte possível da riqueza social em mercadoria e todos os produtores de riqueza em produtores de mercadorias. Quanto mais conseqüente uma sociedade é nesse processo, tanto mais capitalista é seu caráter.

Em relação à destruição de formas não monetárias de reprodução, o desenvolvimento histórico ateve-se de forma literal a esse programa. Ao menos nas metrópoles, elas foram eliminadas no mais tardar no século XX ou ao menos completamente marginalizadas. Paralelamente a isso, um novo ator em questões de produção de riquezas começou a fazer carreira: o Estado. No entanto, apesar de a expansão da atuação estatal encaixar-se no grande processo de monetarização e transformação de toda atividade socialmente válida em trabalho remunerado, ela não participa diretamente no processo de transformação em commodities. A riqueza social nascida das atividades estatais não era constituída de mercadorias adicionais, dirigidas à melhor comercialização possível. Onde o Estado põe mercadorias à disposição ou participa de sua troca de donos, ele anula a troca de equivalentes, ou seja, a forma social de relacionamento entre donos de mercadorias. Mas o que será que levou a sociedade da mercadoria a botar no mundo uma forma de produção e distribuição de riquezas que desviava substancialmente de sua própria configuração?

A solução dessa charada está no caráter específico que a riqueza assume em sua transformação em mercadorias. Essa transformação constitui-se de dois momentos contraditórios. A “forma elementar” da riqueza capitalista, a mercadoria individualizada, vale como algo fundamentalmente paradoxo, que seja, uma “socialização não-social”(Marx).

De um lado, a ascensão da mercadoria à condição de forma de riqueza dominante leva à formação de um sistema altamente socializado e que tem como característica uma divisão de trabalho muito acentuada. O avanço da mercadoria tem como conseqüência lógica o mercado mundial e com isso a fusão de produção e consumo em um único contexto planetário. Os produtores individuais e os sujeitos da mercadoria agem como membros interligados de um gigantesco agregado social.

Ao mesmo tempo, a degradação de riqueza em riqueza de mercadorias significa uma dessocialização sistemática, e isso sob dois aspectos. De um lado, pelo fato de que com o domínio da forma-mercadoria as relações sociais passaram a existir somente como relações entre coisas. Enquanto que a sociedade não sobrevive sem relações sociais diretas, para estas passa a haver lugar somente em uma esfera social especial, separada do contexto social maior. Por outro lado, também no caso da relação com os bens materiais transformada em relação com mercadorias trata-se de um conceito radicalmente dessocializado, e isso no espaço social previsto para cada pessoa no infinito universo das mercadorias. Sob o ponto de vista do produtor, as qualidades materiais sensíveis de seu produto, e com isso também sua repercussão e sua realidade sociais, são completamente irrelevantes. De importância é somente sua vendabilidade. Nesse sentido, sob a perspectiva do produtor não há diferença entre armas químicas e jujubas, filmes de ação e cortinas. O comprador, por seu lado, pode adquirir somente produtos finais isolados, a cujas condições de surgimento, e com isso a sua dimensão social, ele não tem nenhum acesso. Afinal, o sujeito da mercadoria não tem nenhuma relação com as mercadorias das quais ele não é nem comprador nem vendedor. Ele só consegue se relacionar com uma fração microscópica do universo das mercadorias e isso através do pagamento. Quem, nesse universo das mercadorias, cai para fora desse ambiente de compra e venda fica na mesma situação de um peixe fora d`água e, em um mundo altamente socializado, fica isolado de tudo aquilo que compõe uma existência humana.

A contradição interna entre socialização total e dessocialização radical, no final das contas, leva a nada mais do que à autodestruição. Uma sociedade que quisesse obrigar seus membros a, em todas os aspectos de sua vida, se espremerem pelo buraco de agulha da troca de equivalentes, seria incapaz de reproduzir-se. Para fugir da auto-desmontagem, a sociedade das mercadorias não pode evitar excluir partes da produção social de riquezas para somá-las à forma-mercadoria não de forma direta, mas de forma indireta. Isso, em primeiro lugar, vale para as diversas atividades domésticas. A indispensável preparação do consumo privado como também aspectos centrais do abastecimento básico social são expulsas para o âmbito da dissociação. A sociedade das mercadorias conta com que algumas mãos invisíveis, geralmente femininas, eduquem as crianças, cuidem de parentes e gerenciem a economia doméstica.

No entanto, a sociedade das mercadorias não conta somente com essa forma degenerada das relações sociais imediatas, representadas por todas as atividades realizáveis sem um agregado social maior. Para poderem agir enquanto sujeitos da mercadoria, as pessoas têm que encontrar determinadas pré-condições infra-estruturais gerais dessa forma de existência. Não há transporte individual sem a existência de ruas utilizáveis pelos automóveis. Nenhuma força de trabalho pode entrar no mercado de trabalho sem percorrer previamente instituições de ensino que a adestre nos necessários padrões culturais gerais. Para que essas pré-condições da existência enquanto sujeito das mercadorias sejam acessíveis universalmente, elas próprias não podem assumir a condição de mercadoria. Quanto mais o aumento da produtividade avança, tanto maior e mais complexo se torna esse sistema de prestações infra-estruturais necessárias, e somente o Estado enquanto universalidade abstrata está em condições de arcar com seus custos. O caráter anti-social da sociedade das mercadorias força o surgimento de uma segunda e dela derivada forma de riqueza social. A vitória da riqueza de mercadorias primária não poderia ter acontecido sem o surgimento de um volumoso setor de produção de riqueza organizado pelo Estado.

Na sociedade das mercadorias, a riqueza conquista reconhecimento social sempre pelo mesmo caminho, que é pela transformação em relações monetárias. O que não é mercadoria é divertimento particular. Onde corre o dinheiro é também onde está a significação social.

Também a expansão do setor estatal encaixa-se no grande processo histórico da monetarização. No entanto, a variante estatista, secundária, é substancialmente diferente da monetarização pelo avanço da mercadoria. A produção de mercadorias vendáveis multiplica, em termos sociais gerais, a riqueza monetária. Já a produção de riquezas organizada pelo Estado se apresenta em termos sociais gerais principalmente como consumo – como consumo estatal. A forma secundária de riqueza da sociedade da mercadoria tem que ser alimentada pela riqueza de mercadorias primária.

Esse caráter deficitário deve-se a uma diferença fundamental na forma de intermediação social. As relações de troca funcionam estritamente segundo o princípio da equivalência. Quem quer obter uma mercadoria tem que abrir mão de seu valor em favor do vendedor e com isso o realiza. No setor estatal, esse princípio não vale mais. Valor não se troca por valor. Dar e receber se desassociam, pelo menos parcialmente. Um assume a forma de obrigações de pagamento estabelecidas administativa e juridicamente (impostos, contribuições), o outro assume a forma de direitos estabelecidos juridicamente.

Nas atividades estatais financiadas exclusivamente por impostos e contribuições, que estão gratuitamente à disposição de todos os usuários potenciais, essa dissociação é completa. Mas também a utilização paga da infra-estrutura pública de forma alguma está submetida ao princípio da equivalência. Isso não vale somente para empreitadas estatais deficitárias, mas também para as que dão lucro. Seu caráter de infra-estrutura, seu direcionamento a um fornecimento completo em sua respectiva área de atuação, tem na obrigação de fornecimento a todos sua manifestação jurídica. As empresas públicas estão obrigadas a oferecer seu serviço a qualquer cidadão sempre pela mesma remuneração, independentemente do respectivo custo de produção. O lugar do preço é assumido pela taxa.

A sociedade da mercadoria tem na mercadoria força de trabalho sua mercadoria básica. O sistema da valorização do valor depende de material humano que possa ser transformado em valor. Nesse sentido, às pré-condições gerais da produção de mercadorias a serem garantidas pelo Estado pertence também a disponibilização da mercadoria força de trabalho, e isso em uma qualidade que corresponda ao nível de produtividade alcançado.

Essa tarefa coincide parcialmente com as prestações infra-estruturais do Estado. Também vendedores de força de trabalho, atuais, futuros ou passados, fazem uso, como todos as outras categorias de donos de mercadorias, do sistema educacional, da rede de transportes e das instituições culturais ou do fornecimento público de água. Na mesma medida em que o possuidor de força de trabalho ascende à categoria principal de possuidor de mercadorias, passou a caber à regulação estatal uma função adicional, que corresponde ao caráter específico dessa mercadoria. Em sentido estrito, ela cabe ao Estado de Bem-Estar Social.

O possuidor da mercadoria força de trabalho goza de dupla liberdade. Como qualquer outro sujeito da mercadoria, ele pode dispor livremente de sua mercadoria e pode ele próprio oferecer sua pele no mercado. Ao mesmo tempo, ele está liberado de todas as outras possibilidades de reprodução, que pudessem lhe permitir decidir não oferecer-se. Essa segunda liberdade significa nada mais do que a estrutural coação ao trabalho.

A coação estrutural ao trabalho, entretanto, nem sempre garante a possibilidade de se viver da venda da própria força de trabalho. É que a existência enquanto vendedor de força de trabalho está ligada a certos riscos biográficos regulares. A capacidade de trabalho pode perder-se temporariamente (doença) ou permanentemente (velhice, incapacidade) ou então pode acontecer de não se encontrar um usuário para ela. O Estado de Bem-Estar Social e seus seguros obrigatórios organizam fontes de renda alternativas para o caso desses riscos se concretizarem e com isso possibilitam aos possuidores de força de trabalho que por ventura tenham saído do rumo uma reentrada substituta no lindo mundo das mercadorias. A redistribuição promovida pelo Estado de Bem-Estar Social em nenhum momento revogou a coação estrutural ao trabalho, pelo contrário. Em primeiro lugar, as prestações do Estado de Bem-Estar Social via de regra estão atreladas, em termos de sua duração e volume, a rendimentos salariais prévios; em segundo, para todos os oficialmente capacitados ao trabalho, o trabalho efetivo é substituído por uma prontidão de trabalho controlada oficialmente. Onde a prontidão de trabalho começa e onde ela termina, deixa espaço para interpretações. A garantia coletiva contra os riscos da existência enquanto vendedor de força de trabalho constitui um certo afrouxamento da rigorosa coação a vender-se.

c) A vitória e a derrota do mercado

A vitória da sociedade da mercadoria no século XX veio acompanhada pelo avanço do Estado. Somente dessa forma é que a gritante contradição interna da “sociabilidade não-social” pôde encontrar uma solução provisória. No entanto, nessa solução provisória havia uma armadilha. Ela só funciona sem problemas enquanto a massa do trabalho produtor de valor se materializar em mercadorias. Porém, no mais tardar com a revolução microeletrônica, pôde-se constatar um desgaste da substância do trabalho nos setores industriais centrais. A discrepância entre o crescente esforço para o sustento dos padrões infra-estruturais e o cada vez mais atrofiado centro produtor de valor leva a uma crise financeira estrutural do Estado ativo. A sociedade da mercadoria está sob o risco de ser esmagada pela sua própria falsidade.

A crise da sociedade do mercado, no entanto, não transforma em problema apenas o financiamento das prestações padrão do Estado. Com ela, a atual descrição das tarefas da atividade estatal também é colocada à disposição. Isso se refere, primeiramente, ao Estado de Bem-Estar Social em si.

Para a era do trabalho massificado fordista, a sociedade da mercadoria pode ser descrita como uma comunidade de integração repressiva. Nesse contexto, Estado de Bem-Estar Social, como já indicamos, fez carreira como um instrumento de disponibilização e flexibilização da força de trabalho. Sua expansão foi uma das condições imprescindíveis da individualização da manutenção da existência humana e com isso também para o recuo de formas de reprodução pré-capitalistas baseadas em auto-suficiência familiar. Sem essa garantia contra os riscos regulares de uma existência enquanto vendedor de força de trabalho, as pessoas dificilmente deixariam convencer-se a assumir essa forma de existência sem mais nem menos.

Face à crise da sociedade da mercadoria, cada vez mais material humano considerado supérfluo em termos capitalistas cai na área de competência do Estado de Bem-Estar Social. Com a mudança de sua clientela, as funções de integração e de normatização do Estado de Bem-Estar Social começam a dissociar-se em ralação à valorização do valor. A garantia do Estado de Bem-Estar Social, até então custo adicional ou prévio da atividade produtiva, sob o ponto de vista do capitalismo geral é considerada, pelo menos parcialmente, como constituindo a notória “mal-alocação” de recursos. Pela perspectiva da concorrência internacional pela localização de indústrias, que substituiu a perspectiva da economia nacional, é considerado “luxo” investir os sempre escassos recursos financeiros em pessoas das quais dificilmente se pode esperar a amortização desse investimento. A “generosidade”, com a qual pessoas desempregadas eram carregadas nas costas sob a premissa de que sua condição era passageira e que elas eram potenciais sujeitos da mercadoria e do dinheiro, perde a sua base material. O Estado de Bem-Estar Social transforma-se em instância de seleção e exclusão, que tem a decidir entre o material humano aproveitável e o não-aproveitável. Para os últimos, se levar-se a lógica da sociedade da mercadoria até suas últimas conseqüências, só resta a existência de sujeitos monetários desmonetarizados.

A dinâmica da produção fictícia de capital nos anos 80 e 90 encobriu a crise fundamental da sociedade do trabalho. O recurso à contabilidade de trabalho futuro serviu como combustível substituto à contabilidade do trabalho atual e manteve a maquinaria da valorização do valor funcionando. Portadoras materiais das esperanças do capitalismo de cassino foram, em primeira linha, as novas tecnologias de informação. Uma nova infra-estrutura gigantesca surgiu nesse setor, e dessa vez uma era lucrativa em termos da economia privada.

O crash da New Economy demonstrou duas coisas. Em primeiro lugar, que o artifício de queimar carvão que ainda não saiu da mina não pode manter-se por muito tempo. Em segundo, demonstrou que há limites para a tentativa de transformar os investimentos na nova infra-estrutura de comunicação em mercadorias.

Com isso, de forma alguma terminou a empreitada de privatização da infra-estrutura; o que ocorre é que seu centro de gravidade se deslocou em função da situação financeira precária do Estado. Um outro combustível mais sólido é colocado no lugar da capitalização de expectativas futuras. As condições gerais de reprodução social organizadas pelo Estado devem cada vez mais tornar-se mercadorias lucrativas. Elas agora são jogadas como combustível para dentro da garganta da maquinaria produtora de lucros e o que por conta própria não puder liberar energia de combustão é jogado ao mar como peso morto.

O capitalismo de nossos dias acaba com a diferença entre condição infra-estrutural da produção de mercadorias e a própria produção de mercadorias. Essa variante da acumulação capitalista tem seu modelo em uma cena de “Volta ao Mundo em 80 Dias”, de Jules Verne. No navio a vapor que deveria levar o herói Phileas Fogg de volta para a Inglaterra através do Atlântico acabou o carvão combustível antes do tempo. Em seguida, ele convenceu o capitão e a tripulação a queimar o próprio navio, pedaço por pedaço, para manter as caldeiras funcionando.

Quais conseqüências tem a utilização do método de Fogg para a sociedade da mercadoria?

A resposta está à mão: a mercadoria representa o paradoxo de socialização anti-social. Para que, apesar dessa contradição interna, as condições gerais de existência da sociedade da mercadoria possam ser asseguradas, uma secundária forma de riqueza, organizada pelo Estado, tinha que ser posta ao lado da produção de mercadorias. Onde as mercadorias substituem a contribuição estatal à produção de mercadorias, essas condições não estão mais asseguradas. O avanço da mercadoria leva a impulsos de dissolução da sociedade. A exclusão dos que não podem ser aproveitados, a desmontagem dos sistemas de proteção do Estado de Bem-Estar Social, para em seguida transferir ao mercado a responsabilidade pela manutenção da existência humana, vistas mais de perto mostram ser apenas um elementos parciais de um processo geral muito maior de dissolução da sociedade.

O que significa dissolução da sociedade depende de qual função estatal é transferida ao mercado. Em relação às clássicas empreitadas estatais, como ferrovias, fornecimento de água e energia, correios etc., há um problema em seus bens e serviços infra-estruturais. Relações puramente de mercado são relações particulares entre parceiros de troca separados, não são relações universais. O vendedor de mercadorias nunca se relaciona com a totalidade de todos os sujeitos da mercadoria, mas somente em várias relações individuais rentáveis. Isso colide com o caráter de generalidade da infra-estrutura. Privatização leva irremediavelmente a uma concentração da oferta nos setores centrais rentáveis. Faz parte do caráter da lógica administrativa privada negligenciar e reduzir a oferta de serviços que não são rentáveis. O acoplamento entre privatização da infra-estrutura e um dever jurídico de fornecimento básico leva, em uma época de otimização de custos, a uma constante redução da definição do que signifique o termo fornecimento básico.

Para uma infra-estrutura que funcione, a certeza de fornecimento tem um valor muito alto. Certeza de fornecimento está ligada a reservas. A maquinaria da valorização é dependente do fato de as capacidades atuais se diferenciarem das capacidades potenciais. A manutenção dessa diferença, no entanto, é um tapa na cara da lógica da administração privada. Ela conhece somente o mandamento da minimização de custos por unidade de mercadoria. A maximização de lucros implica na minimização da diferença entre capacidade atual e capacidade potencial do sistema infra-estutural. Porém, isso leva necessariamente a déficits de flexibilidade nos casos de flutuações e perturbações. Onde o mercado impõe sua lógica à infra-estrutura, colapsos periódicos já estão programados. Os apagões nos EUA no último verão demonstram com razoável clareza qual é o custo social da minimização de custos na administração privada de empresas de infra-estrutura.

Também a utilização de serviços públicos infra-estruturais tinha ou tem um custo, na maioria dos casos. Quem recebe eletricidade e água em casa ou utiliza o transporte público tem que pagar também quando esse serviço é prestado por empresa pública. A obrigação de pagamento assume a forma de taxa. Se a infra-estrutura cai nas mãos do mercado, a relação monetária muda e o preço assume o lugar da taxa. O que muda com isso? O que ocorre é que, diante das empresas públicas, todos são iguais. A taxa não conhece uma diferença nos princípios entre grandes e pequenos usuários e ela, via de regra, permanece constante por um período de tempo maior. No caso do preço, a coisa muda de figura. Ele em princípio dá preferência ao grande consumidor e apresenta grandes variações.

A privatização é apresentada como uma desburocratização. Concorrência e orientação para a lucratividade supostamente fazem com que as empresas mais bem aceitas pelos clientes e com os serviços mais cômodos é que consigam se manter no mercado. A concorrência entre os ofertantes de serviços, após o fim das empresas monopolistas estatais, leva a um caos incurável nas ofertas e nos preços. A aquisição de serviços infra-estruturais torna-se ocupação integral para aqueles interessados no preço mais baixo. O desmembramento de determinados setores em empresas subsidiárias causa uma confusão nas competências, que faz o antigo Estado prolixo em complicações parecer um lugar de clareza e eficiência. Esse desmembramento, muitas vezes, chega a causar riscos de vida para alguns.

O processo de transformação em commodities alcança até mesmo os seguros de saúde e a previdência social. A resposta à miséria financeira da segurança social, desencadeada pela crise da sociedade do trabalho, chama-se “ter responsabilidade por si mesmo”, ou seja, transferir a responsabilidade a forças do mercado. A que leva essa transferência de responsabilidade? Em primeiro plano, a duas coisas. Primeiro: se o que era antes financiado por impostos e contribuições dos patrões agora deve sair do salário do trabalhador individual, os custos de reprodução da mercadoria trabalho vai às alturas. Em segundo lugar: muitos não estão em condições de arcar com esses custos adicionais. O nível dos pagamentos previdenciários e das pretensões a eles acumuladas cai dramaticamente, especialmente na geração mais jovem. Não somente desemprego, também os outros dois riscos regulares de uma vida de vendedor de força de trabalho, qual sejam, velhice e doença, tornam-se novamente sinônimo de pobreza.

O fato de o avanço do mercado na área previdenciária impossibilitar a participação nele a cada vez mais pessoas deve-se primeiramente a sucessivas mudanças na forma de acesso. A criação do Estado de Bem-Estar Social significou a dissociação parcial de contribuição individual e pretensão a pagamento e, ao mesmo tempo, a reunião de pessoas com diferentes riscos de seguro em comunidades monetárias de seguro de responsabilidade civil. O avanço do mercado elimina essas duas categorias festejadas sob o chavão “comunidade solidária”. De um lado, ele leva invariavelmente a uma triagem entre bons e maus riscos. As pessoas têm que pagar contribuições mais altas em função de uma probabilidade biográfica mais alta de realmente chegar a exigir as prestações previdenciárias. Por outro lado, o princípio da equivalência não permite que contribuições diferentes dêem causa à concessão de prestações previdenciárias iguais. As previdências sociais financiadas por rateio beneficiavam principalmente as camadas de renda mais baixa. Seu privilégio se tornou vítima do princípio da equivalência.

A mudança de sistema torna-se mais clara no caso dos seguros de saúde. Na concorrência entre seguros de saúde públicos e privados, há duas interpretações contrárias do termo “igualdade”. Os seguros de saúde públicos representam o princípio do acesso igualitário para todos os segurados. A “responsabilidade por si mesmo” no sistema de saúde ajuda a fazer valer o princípio da equivalência. Saúde transforma-se de um bem acessível a todos em uma mercadoria, que o indivíduo tem que poder comprar. A tendência de cortar pessoas de serviços de saúde pode até causar alguma indignação; no entanto, nesse país pode-se até mesmo fazer publicidade com a lógica subjacente. Recentemente, uma grande seguradora alemã utilizava o seguinte slogan em seu anúncio: “Uma bactéria de cárie não liga para quanto você ganha. Um seguro de saúde adicional da Allianz também não.”

2. Contra-ataque

a) Ideologia de mercado radical e resistência

Nas discussões ideológicas da história do capitalismo, as idéias que conseguiram se impor foram aquelas que, de seu modo, refletiam a lógica do sistema e o respectivo nível histórico de contradição alcançado pela sociedade capitalista. Enquanto formas de consciência fetichista, elas não eram nunca somente traduções funcionais imediatas do atual imperativo do sistema. Nunca uma corrente política e de visão de mundo se resumiu a uma pura função executiva. Isso vale também para a atual loucura de mercado e responsabilidade por si próprio. Seus representantes, com efeito, imitam entusiasmados a teleologia histórica do marxismo jurássico; assim como os partidários da Segunda Internacional consideravam que a dourada necessidade histórica estava a favor de si, da mesma forma os radicais de mercado bradam sobre “necessidades indeclináveis” quando põem em prática seu programa de desestatização. Essa obviedade, todavia, desvia a atenção do real motor da corrente radical de mercado. A mania de mercado e responsabilidade por si próprio, como toda ideologia, não se destaca somente pelo elemento de maior visibilidade. Enquanto religião de salvação da época atual, ele tem além disso um caráter utópico-visionário e fornece uma visão total da realidade ao mesmo tempo ideal e real.1 [2] Os radicais de mercado não são meros administradores da crise. Sua ideologia social-darwinista e marcada pelo terrorismo do trabalho os leva ao êxtase e a uma compreensão altamente unilateral do imperativo do sistema, uma compreensão com isso ao mesmo tempo muito coerente.2 [3]

Isso é que é a força e ao mesmo tempo a fraqueza do projeto do mercado radical. Por um lado, em seu desprezo pela realidade, ele leva em conta os previsíveis efeitos colaterais como poucos antes dele. Em seu trajeto pela realidade social, o rolo compressor do mercado radical, cuja função supostamente é a de melhorar o mundo, deixa para trás um monte de escombros atrás do outro. Dessa forma, no entanto, a transformação radical de mercado cria cada vez mais focos de conflito. Não somente o grande projeto autofágico se caracteriza por traços no mínimo disfuncionais, até mesmo para o próprio capital; isso vale também para quase todas as medidas isoladas. Por outro lado, a implacável identificação total com a lógica do dinheiro deixa os radicais de mercado em condições de oferecer uma interpretação de mundo e uma perspectiva coerentes no âmbito da sociedade de mercado, além de lhes permitir uma pretensão de universalidade.3 [4] Em função dessa capacidade, os conceitos neo-keynesianos de superação de crises não resistem aos argumentos em favor dos sacrifícios exigidos pelos radicais de mercado e, nessa falsa polarização, acabam por servir à argumentação dos radicais de mercado. O que não dói de início não pode servir a longo prazo. Com o radicalismo de mercado, surge uma nova ideologia que é capaz de apresentar até mesmo tiros de metralhadora e execuções sumárias como efeitos colaterais infelizmente necessários, que as pessoas devem aceitar por interesse delas mesmas.

Essa dialética estranha não pode ser desmontada de forma puramente imanente. Para ocupar de forma emancipatória os vários focos de conflito que pipocam, é necessário um posicionamento contrário que também tenha um ponto de vista universal, e universal um sentido crítico ao sistema.

A sociedade da mercadoria transforma todas as pessoas indiferentemente em sujeitos da mercadoria e do dinheiro. Desta forma, no âmbito da ordem vigente também a luta das correntes emancipatórias por uma participação maior na riqueza social tinha que assumir a forma da luta por interesses concorrenciais banais. O que é comum entre os vendedores da mercadoria força de trabalho e as outras categorias de proprietários de mercadorias é o esforço de todos para se verem livres de sua mercadoria por condições o mais favoráveis possível. Na briga pela repartição dos recursos da sociedade capitalista, aqueles que vivem de ajuda social estão tão interessados no dinheiro quanto os capitalistas. No entanto, na história capitalista não houve luta por melhores condições de vida que se resumisse à execução de interesses concorrenciais banais. Até mesmo a consolidação coletiva de conquistas muito simples pressupunha a suspensão parcial da concorrência entre o material humano capitalista. Todas as lutas imanentes se alimentavam de uma contraposição à vigente sociedade da concorrência, mesmo que isso não estivesse claro. Com o empalidecimento dessas imagens de contraste, também elas perderam em veemência e, no final, sucumbiram completamente.

Na época do movimento operário, a idéia da “expropriação dos expropriadores”, ou seja, a visão da transferência da grande máquina do trabalho à direção solidária do proletariado serviu como gerador de energia. Essa idéia de uma sociedade diferente se exauriu completamente. O descontentamento com a ofensiva geral do radicalismo de mercado nunca vai se transformar em um movimento de protesto emancipatório se um novo sonho não assumir o lugar do anterior. Um processo de ressolidarização está ligado a um pensamento de apropriação direta da riqueza social e das potencialidades produtivas que se torne socialmente potente. A maquinaria do trabalho e da valorização monopoliza todos os recursos para si e ao mesmo tempo tem cada vez menos aplicação para o capital humano. A resposta emancipatória adequada a esse estado de coisas só pode ser o desejo de desmontar a máquina do trabalho, que está sufocando em sua própria riqueza de bens. Somente uma imagem de contraste que surja da crítica radical do fundamento da sociedade da mercadoria permitiria uma reformulação crítica das frentes de conflito social. Se o mercado e o maquinista estatal declaram a maior parte das pessoas como supérfluas, não estão eles próprios declarando sua própria superfluidade? A sociedade tem que se libertar da coerção estrutural de reduzir toda a riqueza a riqueza de mercadorias e todas as relações sociais a relações jurídicas e de mercadorias. Para a produção de bens isso significa a passagem a uma reprodução social baseada diretamente e unicamente em critérios de necessidade sensorial, que seja viável sem necessitar da intermediação do dinheiro e do Estado.

Naturalmente, essa perspectiva de oposição não pode se resumir a um programa ad hoc de apropriação. Ela deve visar processos de transformação profundas e de longo prazo. Sem uma tal orientação ampla, os oponentes do radicalismo de mercado ficam para trás não só discursivamente mas também condenados a, nas lutas imediatas, se perder em batalhas secundárias sem perspectivas.

Nesse sentido, a atual situação transmite uma mensagem bastante clara. A grande euforia neoliberal dos anos 80 e início dos anos 90 se acalmou nesse meio tempo. Apesar da crise do capitalismo de cassino, ou melhor, exatamente por causa da crise, todas as forças sociais dominantes se mostram comprometidas com o programa do radicalismo de mercado. Em todo o mundo, privatização e transformação em commodities estão na ordem do dia. Para que “crescimento” e “emprego” possam novamente ser possíveis, “mercado” e “responsabilidade por si mesmo” devem substituir em larga escala a obrigação estatal pelo bem-estar social. O ato de botar em prática esse programa causa uma grande devastação social e faz com que surjam resistências e protestos. As sucessivas monstruosidades fazem com que milhões de pessoas protestem nas ruas em alguns países. E mesmo assim, os oponentes do suicídio do radicalismo de mercado permanecem obscurecidos na discussão social e invariavelmente na defensiva na briga pública de opiniões – em todo o mundo.

As premissas básicas da crítica comumente praticada são decisivamente co-responsáveis por essa situação intolerável. Os oponentes do radicalismo de mercado se alimentam da lembrança nostálgica do capitalismo fordista, contido pelo Estado de Bem-Estar Social, e têm como ponto comum com os radicais de mercado a idéia de que a reprodução social só pode ser um produto residual da valorização social do valor e da acumulação de riqueza monetária. E, da mesma forma em concordância com o dominante radicalismo de mercado, também seus opositores consideram riqueza material como sinônimo de riqueza monetária. Quem opera com esses conceitos, no entanto, está prestando obediência à lógica assassina da sociedade da mercadoria, mesmo que não intencionalmente O neo-keynesianismo argumenta obstinadamente como se a resistência contra a violência suicida do radicalismo de mercado fosse legitimada somente pela comprovação de que o crescimento capitalista é possível de uma forma diferente, que exige bem menos sacrifícios. Em que ele afirma ser a “questão da possibilidade de financiamento” possível de ser resolvida pela aplicação de seus conceitos, ele implicitamente reconhece esse argumento como o critério supremo e com isso reconhece também a legitimidade da lógica do dinheiro e da lucratividade. No entanto, com isso ele já se colocou automaticamente como perdedor. Na luta dos sistemas alucinados, os radicais de mercado tem as melhores cartas se a discussão prosseguir nesses termos.

A sociedade da mercadoria se encontra diante de duas tarefas que cada vez mais se mostram incompatíveis. O sistema a coage a traduzir sua riqueza em riqueza monetária. Ao mesmo tempo, ela tem que manter a capacidade de reprodução social e evitar cair em condições de anomia. A oposição está errada ao fechar os olhos para essa incompatibilidade e contrapor ao radicalismo de mercado conceitos de valorização alternativos. Ao invés de gastar energia em tentar convencer a si mesma e ao público da plausibilidade de conceitos monetários duvidosos, ela deveria se concentrar em deslocar o foco da discussão para a questão das pré-condições da reprodutibilidade social e da riqueza social sensível, que foi eliminada da discussão pelos radicais de mercado em nome de um novo darwinismo social. Quem pensa de forma conseqüente sobre os custos diretos e indiretos dos cortes realizados pelo radicalismo de mercado e rotula o processo de transformação em commodities como um programa de suicídio social não precisa apresentar a resistência como compatível com o sistema de valorização do valor. A questão da legitimidade deve ser utilizada ofensivamente desde o princípio. Se a ordem capitalista não prevê mais a reprodução social, qual motivo ainda existe para fazer concessões à sua lógica?

O pensamento emancipatório não começa quando as pessoas, por respeito à vaca sagrada do dinheiro, desaprendem as regras mínimas de matemática e fantasiam que “há dinheiro suficiente por aí”, imaginando que podem ser melhores maquinistas da empreitada capitalista. O pensamento emancipatório, mais que tudo, elimina o critério da financiamento como o critério de todos os critérios. O fato de a seguridade social não ser mais compatível com as condições de reprodução da sociedade é somente para o louco radicalismo de mercado um argumento contra assistência médica, educação pública etc. A intenção de sacrificar a infra-estrutura e a perspectiva de vida de milhões de pessoas por causa do inviável saneamento do orçamento público é louca e só merece uma coisa: incompreensão ofensiva. Quando as contas em grandezas monetárias se tornam socialmente suicidas, é chegada a hora de atacar esse processo esdrúxulo. O radicalismo de mercado enxergou a questão da financiamento sob uma ótica de funcionabilidade do sistema e a superestimou. Oferecer-lhe oposição só pode uma corrente que centre sua atenção na questão da riqueza material e das relações sociais e culturais, e isso com indiferença demonstrativa em relação aos imperativos do sistema e, dessa forma, desde o início com um sentido que vá além da importância desses imperativos para a sociedade da mercadoria. Somente nas condições do atual capitalismo de crise é que a discussão fundamental sobre o que se deve entender por riqueza ganha uma formulação de conflito que seja socialmente emancipatória.

b) A luta pela massa estatal falida

Na sociedade da mercadoria, só um critério distingue as ações e os bens que são parte da riqueza social e aqueles que não são reconhecidos como tal – o critério da vendabilidade. Se armas químicas têm procura comercial, sua produção faz parte da riqueza social; já o ato de cuidar de crianças, não. A sociedade da mercadoria só pode contornar essa cegueira estrutural e assim garantir as condições básicas da reprodução social de uma forma: através da intervenção do poder estatal, conforme vimos na primeira parte do presente artigo. E é exatamente essa forma limitada de levar em consideração necessidades sensíveis-materiais que está na mira do projeto do mercado radical. De um lado, devem desaparecer as barreiras erguidas pelas instâncias estatais contra a ação destruidora da concorrência desregulamentada (leis ambientais, de condições de trabalho, de horário de funcionamento de lojas etc.). Por outro, a empreitada desregulamentadora, com sua exigência por restrição de custos e transformação geral em commodities, tem em sua mira o poder redistribuidor do Estado, na medida em que ela tenta amenizar os resultados da concorrência total (Estado de Bem-Estar Social). Uma oposição que proponha um novo estatuto material-sensível para a riqueza social e para a forma de relacionamento social contra a ditadura da riqueza monetária abstrata só pode se formar em contraposição a esse processo. Ela não pode evitar se meter no conflito pelo poder redistribuidor do Estado e contrapor exigências próprias ao conceito radical de mercado da concentração de todos os gastos estatais em setores imediatamente relevantes para a valorização. Enquanto a maior parte da riqueza social for prensada pelo buraco de agulha do dinheiro, também essas exigências inevitavelmente terão que assumir um caráter monetário.

Ao primeiro olhar, isso poderia parecer uma renúncia à linha fundamentalmente crítica do Estado e do dinheiro, que tínhamos acabado de propor. Mas se olharmos melhor, vemos que não é bem assim. Enquanto que conceitos reformistas têm a máquina estatal em decomposição como uma norma inevitável e a querem restaurar, uma oposição que lute por uma reformulação da riqueza social lida com o potencial redistribuitivo estatal meramente como um ponto de partida fático. O não ao radicalismo de mercado não implica em um sim ao poder estatal. A luta é antes pela massa falida. A questão é se a infra-estrutura pública que foi construída ao longo de 150 anos será queimada em pouquíssimo tempo pela economia de mercado ou se será possível preservar seus elementos que mereçam ser salvos para que eles possam ser reutilizados por um movimento de apropriação social.

A discussão pública ainda está parada no temível paradigma da financiamento. O pensamento emancipatório só pode ter indiferença em relação à miséria das finanças estatais e se manter firme em favor do primado de outros critérios.

A briga em torno da questão da financiamento pode também ser entendida como luta pelo significado da palavra “sustentabilidade”. Já nos anos 70 se dizia que aqueles que estavam vivos estariam pondo em risco o futuro das gerações seguintes. Como sabemos, naquela época isso se referia à destruição da natureza. Desde então, a exigência de “não pôr em risco o futuro de nossas crianças” passou a legitimar um orçamento cada vez mais restritivo. A riqueza social atual, garantida pelo Estado, deve ser sacrificada no altar de um futuro monetário fictício. Já está mais do que na hora de direcionar o conceito de futuro para a perspectiva de questões sensíveis-materiais, só que dessa vez em larga escala.

A recusa em reconhecer a questão da financiabilidade como a questão de todas as questões não pode ser confundida com uma demanda por um aumento absoluto das despesas estatais. Essa diferença é importante na medida em que o Estado, que está atolado na concorrência internacional pela localização de indústrias, ante a crise de forma alguma está comprometido em termos gerais com uma política de orçamento restritivo, pelo menos não nos centros do mercado mundial. Isso não é de importância para um futuro distante mas já para as brigas dos próximos anos. Na prática, também no âmbito do radicalismo de mercado está sendo delineada a transição para uma política de endividamento excessivo e motivada por um keynesianismo de bolsa de valores. Na Europa esse processo está no começo; nos EUA, já está completo. Mas isso implica em uma mudança também na discussão pública, mais cedo ou mais tarde. Em breve, nos países dignos de crédito estatal, a discussão girará menos em torno da questão se deve haver endividamento em grande estilo e mais em torno da questão para quais fins esse endividamento será feito e para onde devem ser direcionados os recursos assim obtidos. Deve a enorme potência redistributiva estatal nas metrópoles continuar sendo concentrada em setores que constam como relevantes para a renovação de ilusões de crescimento capitalista? Essas sociedades aceitarão assumir os custos gigantescos de universidades de elite e de “indústrias de futuro” sem perspectivas, com o crescente descaso da restante infra-estrutura social?

O neo-keynesianismo de esquerda não tem um critério teoricamente fundamentado para fazer a distinção entre gastos estatais bons e maus. Em relação ao prometido efeito de crescimento econômico, no sistema de referências keynesiano não há diferença se o Estado realiza sua função de oferta pela abertura e o posterior tapamento de buracos4 [5] , por gastos militares mais elevados ou por “obras sociais”. Em uma situação em que também a parte contrária se volta para uma política de gastos estatais, o keynesianismo de esquerda e sua argumentação ficam à deriva. Ao mesmo tempo, ele fica em comunhão ideal com seu adversário em face das conseqüências inevitáveis (processos de desvalorização, no que diz respeito ao próprio meio monetário). Um pensamento emancipatório que, desde o início, foque a atenção nas questões materiais-sensíveis ao invés de tratar os “bens materiais e imateriais” como portadores intercambiáveis de efeitos precários de crescimento, não perderá nada de sua capacidade de formulação social dos conflitos. Tanto as configurações de amanhã, marcadas pelo keynesianismo de bolsa de valores, quanto as de depois de amanhã, provavelmente marcadas substancialmente por processos inflacionários, se encontrarão englobadas por essa crítica desde o início.

O poder estatal tem três formas de exercer sua influência variável sobre o lindo mundo concorrencial dos proprietários de mercadorias e com isso sobre a produção social geral. Em primeiro lugar, enquanto Estado de comandos e proibições, ele impede parcialmente os atores capitalistas individuais, em sua despreocupada lógica de externalização de custos, de arruinar rapidamente os recursos humanos e naturais (legislações trabalhista e ambiental). Da mesma forma, ele limita os atores de setores comerciais marginais (drogas, armas) e impede seu livre desenvolvimento comercial, também com meios jurídicos. Em segundo lugar, o Estado de Bem-Estar Social assegura através da redistribuição rendas adicionais ou substitutas a determinados grupos de pessoas, definidos por critérios biográficos5 [6] . Em terceiro, instâncias estatais ou instituições financiadas pelo Estado agem como produtores de bens de infra-estrutura (malha viária, instituições de ensino).

Em sua polêmica contra essas três variantes da intervenção estatal, o radicalismo de mercado representa uma lógica extremamente monótona. A teoria neoliberal extrema nunca teve outra idéia além da de eliminar “entraves burocráticos” e de transferir completamente ao mercado tanto a segurança social quanto a infra-estrutura. Já a práxis radical de mercado opera de forma um pouco mais diferenciada. Ela via de regra aceita o fato de a proibição do homicídio representar certas limitações da liberdade de concorrência, mesmo que os conceitos do que são as medidas necessárias poderem variar conforme o país.6 [7] Quando a interferência estatal traz vantagens para o país na concorrência internacional, ela não é só permitida como muito desejável.

Também o campo emancipatório só pode ter uma relação seletiva com as atuais funções do Estado; entretanto, os critérios pelos quais ele distingue entre as funções dispensáveis e as indispensáveis devem ser diametralmente opostas às que os apologistas da economia de mercado utilizam em sua perspectiva de “nós fortalecemos o país na concorrência internacional”. Enquanto que os radicais de mercado apostam no patrocínio massivo de universidades de elite, uma posição emancipatória descobrirá elementos positivos na idéia de uma educação pública geral. Os radicais de mercado falam na concorrência incondicionada entre todos os sistemas de transporte. Isso combina com a subvenção estatal ao desenvolvimento de trens-bala, que devem concorrer com os aviões e ligam somente grandes cidades. Tais trens consomem grande quantidade de energia e de terras e geralmente rodam com pouca ocupação. Sob uma perspectiva emancipatória, parece muito mais desejável o transporte ferroviário, que é uma alternativa mais ecológica ao transporte individual e, além disso, é acessível a todos.

A sociedade da mercadoria dispõe de uma medida absoluta para julgar sobre a justificativa de existência de setores da produção material de riquezas, que é a rentabilidade econômica. Os radicais de mercado querem ver essa medida cega aplicada a todos os bens infra-estruturais, mesmo que seu caráter de acesso geral e a segurança de suprimento sejam destruídos. A necessidade de uma instalação é medida pelo tamanho do lucro proporcionado.

Uma sociedade orientada por necessidades sensíveis, materiais e sociais não teria uma orientação tão nítida e objetiva. Movimentos sociais que se formam no confronto com a loucura da sociedade da mercadoria também. Uma certa hierarquia de prioridades provisórias seria observável na prática, na medida em que a luta pelo asseguramento da produção de riquezas que não seja subjugada pelo ditado da rentabilidade teria êxitos diversos. As pessoas, ao se mostrarem dispostas a se empenhar em construir uma pressão social ou deixarem as coisas como estão, na prática já estão escolhendo suas prioridades.

Um critério abstrato geral não está ausente somente no que diz respeito às necessidades; também as formas de produção pretendidas por um movimento oposicionista de apropriação não se deixam resumir em um denominador comum universal. Uma sociedade liberta não subjuga a organização da produção de riquezas a algum princípio oposto ao da redução de custos da administração privada. O que ela faz é avaliar como diferentes objetivos (consumo mínimo de recursos, condições de trabalho interessantes e não estressantes para os produtores imediatos, produtos finais duráveis etc.) podem ser melhor combinados em diferentes setores de (re)produção. Uma malha viária continental não pode ser organizada da mesma forma que a produção local de verduras ou uma instituição cultural – isso porque o que caracteriza a loucura específica da sociedade atual é a pretensão de subjugar tudo a uma lógica monetária e assim atingir uma unificação central em todos os setores.

As diferenças sensíveis-materiais também se condensam nas lutas pela configuração da produção de riquezas. Um sistema infra-estrutural altamente complexo e estruturado (fornecimento de energia, malha viária) dificilmente pode ser simplesmente transferido ao controle de uma auto-organização. O movimento social de oposição à loucura do mercado, pelo menos nas metrópoles, fará exigências em relação às prestações infra-estruturais estatais e de forma enérgica deixará claro o que ele quer. Em outras áreas (produção de conhecimento) ele já deixou claro do que ele é capaz.7 [8] Uma atividade estatal conquistada por pressão antipolítica e contrária à lógica da concorrência internacional terá inevitavelmente um caráter colorido. Enquanto for dependente da potência monetária do Estado, ela não poderá prescindir da maquinaria da sociedade da mercadoria. Ao mesmo tempo, a pressão antipolítica terá como objetivo obrigar o Estado, enquanto produtor de riquezas, a garantir o fornecimento de determinados bens públicos e gerais, independentemente de seu papel de maquinista do sistema.

c) Descommmoditização e Apropriação

Seria absurdo que um movimento social orientado por critérios sensíveis-materiais tivesse como objetivo uma forma unificada da produção de riquezas. No que diz respeito à forma de acesso, no entanto, as coisas são diferentes. A sociedade da mercadoria condiciona a participação na riqueza social ao princípio da troca de equivalentes. Um movimento social de apropriação deve contrapor a isso uma exigência de livre acesso às riquezas.

Naturalmente, as perspectivas de pôr em prática esse princípio variam de bem para bem. A defesa é fundamentalmente mais fácil que o ataque. Uma coisa é salvar da commoditização as prestações que o Estado tradicionalmente coloca à disposição gratuitamente (liberdade de aprendizado, vias públicas). A descommoditização de eletricidade, gás ou transporte público é outra coisa totalmente diferente.

Um movimento social necessariamente terá que se sentir satisfeito com vitórias parciais. Na luta contra o ideal da troca universal de equivalências, defendido pelo radicalismo de mercado, ele terá que provisoriamente aceitar também formas monetárias de acesso menos exclusivistas. Entre as alternativas “inacessíveis para a maioria” e “acessível a todos gratuitamente” há muitos estágios intermediários. Um sistema de saúde cujas contribuições variem de acordo com a renda mas que seja acessível e igual para todos é muito mais desejável que do que os seguros de saúde escorchantes propagandeados pelos neoliberais.

Os defensores do livre acesso têm até um argumento emprestado do discurso neoliberal: o repúdio à burocracia. Nada é tão não-burocrático e socialmente barato quanto o livre acesso aos bens sociais. Não há cercas nem cobradores. Nada é tão opaco e excessivamente complicado quanto tarifas altamente individualizadas. Principalmente a tentativa de reintroduzir um elemento social em um sistema de seguridade que foi reestruturado pelo idiotismo do princípio da equivalência leva a situações que fazem o antigo socialismo real parecer um bastião da racionalidade.

Além disso, a orientação em direção ao livre acesso de forma alguma leva a alguma proposta de um self-service que aceite cegamente a riqueza capitalista em sua forma material. Isso porque se deve fazer uma distinção bem delimitada entre o que é desejável na produção e as condições de acesso. Há razões para iniciar um processo de “desmotorização” na sociedade depois que ela foi completamente motorizada. Mas de uma perspectiva emancipatória, não há razão para reservar o transporte individual aos mais abastados e obrigar os “socialmente fracos” a andar a pé ou de bicicleta. Sem dúvida, haveria conseqüências climáticas catastróficas se países como a China ou a Índia alcançassem o grau de motorização norte-americano. Mas isso é um argumento contra a sociedade do automóvel como um todo e não pela exclusão dessas partes do mundo. A crítica totalmente justificada da medicina de aparelhos de forma alguma legitima a economia em procedimentos médicos. Os conteúdos dos padrões sociais de qualidade devem ser questionados e redefinidos. Porém, sob uma ótica emancipatória, esses padrões de qualidade devem sempre permanecer acessíveis a todos.

O capitalismo contemporâneo, conforme o ponto de partida das minhas reflexões, caracteriza a dissociação entre riqueza monetária e riqueza sensível-material. Diante desse processo irreversível, uma perspectiva social emancipatória só pode ser encontrada na sucessiva descommoditização e desmonetarização das relações sociais e na passagem a uma produção de riqueza diretamente socializada e orientada por critérios sensíveis-materiais. Sem o buraco de agulha de dinheiro e troca, desaparece também o problema da escassez.

Como perspectiva social geral, desmonetarização e descommoditização prometem a passagem para uma sociedade rica e o fim da necessidade e da miséria. No entanto, na atual sociedade, quem é acometido pelo destino individual da desmonetarização e descommoditização está diante não de uma providência feliz mas de uma catástrofe concreta. Aquele cuja força de trabalho é descommoditizada, ou seja, fica desempregado e sentado no sofá e também não tem outra forma de acesso a dinheiro não é rico mas muito pobre. Um movimento de emancipação não pode evitar encarar essa questão triste. Em termos de produção de riqueza, ele é chamado a salvar a riqueza social da commoditização e monetarização e descommoditizar e desmonetarizar a riqueza já monetarizada e commoditizada. Entretanto, enquanto grande parte da riqueza social assumir a forma de mercadoria, sua atenção naturalmente deve voltar-se para a questão de como as pessoas em condição descommoditizada podem ter acesso ao necessário equivalente geral, ou seja, dinheiro. O projeto ofensivo da descommoditização da produção social de riqueza não pode ser pensado sem um projeto defensivo paralelo que assegure o fornecimento de dinheiro aos supérfluos em termos capitalistas e os possibilite um acesso suficiente à riqueza de mercadorias. Somente na medida em que riqueza social realmente seja acessível de forma livre, a questão da sobrevivência se dissocia da questão da renda e todas as lutas monetárias por distribuição se resolvem desse plano.

Essa empreitada defensiva, naturalmente, está ligada ao Estado de Bem-Estar Social, pelo menos nas metrópoles. Ele só pode se formar se surgirem movimentos sociais que reajam contra os crescentes ataques contra o sistema de seguridade social vigente.

O Estado de Bem-Estar Social nasceu como instrumento de disponibilização da mercadoria força de trabalho. Ele dava segurança aos proprietários da mercadoria força de trabalho contra os riscos regulares da vida enquanto vendedor da mercadoria força de trabalho; no entanto, ao mesmo tempo ele os obrigava a levar essa forma de existência através da recompensa por direitos adquiridos pelo trabalho prestado. As assim chamadas reformas do Estado de Bem-Estar Social se voltavam contra a doação de pão doce. Direitos previdenciários adquiridos e outras prestações da seguridade social devem ser ao máximo reduzidas. Com a sucessiva desapropriação dos direitos adquiridos em função da venda de força de trabalho, cresce a importância de formas igualitárias de manejo da miséria.

Esse deslocamento do foco realizou-se nos últimos anos de forma automática e silenciosa, na medida em que, com a eliminação de outras formas de segurança social, cada vez mais pessoas caem na camada mais baixa do tecido social, que desde sempre já era estruturado dessa maneira; hoje em dia, no entanto, o que restou do Estado de Bem-Estar Social cada vez mais é transformado nesse tipo de alimentação dos pobres (valor básico da aposentadoria, junção de auxílio-desemprego e ajuda social), e não só na Alemanha.

Apesar de todas as afirmações em contrário, a passagem ao sistema de seguridade igualitário-miserável mostra que a perspectiva de integrar os inaproveitáveis no trabalho remunerado se dissolveu. A coação à sociedade do trabalho, ligada ao sistema de seguridade social, de forma alguma se extingue voluntariamente com a mudança de modelo. Pelo contrário: quanto menos uma inclusão na sociedade do trabalho é provável, tanto mais rígida se torna a obrigação de exercer um trabalho simulado. O poder administrativo substitui o pão doce.

Face à fraqueza estrutural de todas as lutas de interesse baseadas no trabalho, pelo menos na Alemanha é previsível que a luta contra a lógica da exclusão será futuramente travada no contexto das micro-rendas miseráveis.

Essa mudança obrigatória de terreno, para longe dos direitos adquiridos através do trabalho, de certa forma até vai de encontro a uma posição radicalmente crítica do trabalho. Pelo visto, surgem principalmente dois pontos de conflito que servem para uma mobilização e um debate em larga escala. Por um lado, trata-se da simples questão de qual é o valor mínimo para a alimentação dos inaproveitáveis. Nisso, pelo menos uma coisa é clara: não existe um nível mínimo resultante da lógica da economia política para a manutenção da existência. Marx com razão apontou para o fato de que no valor da mercadoria força de trabalho também há um “elemento moral”. O que a sociedade da mercadoria concede aos inaproveitáveis, ou a questão se ela concede alguma coisa, por seu turno depende unicamente desse “elemento moral”.

Por outro lado, o acoplamento da participação na alimentação dos pobres à realização de ações substitutivas do trabalho fornece suficiente material para conflito. A deslegitimação dessa loucura é urgente e nos leva de volta à reflexão inicial da redefinição de riqueza social. Se Marx tem razão em que a verdadeira riqueza de uma sociedade está no tempo disponível, então trata-se aqui de um único e gigantesco empreendimento aniquilador da riqueza, sob a coação do Estado. A apropriação da riqueza sensível-material tem na apropriação de tempo de vida sua precondição e seu conteúdo.

Notas

1 [9] Também no que diz respeito à pretensão de mudar o mundo, o radicalismo de mercado de certa forma assumiu a herança do socialismo.

2 [10] Sistemas alucinados sempre são coerentes.

3 [11] As ideologias racistas abrem mão da pretensão de universalidade.

4 [12] A propósito, eu não inventei esse exemplo. Ele foi dado por Keynes, que nesse aspecto de certa forma tinha um coração aberto. Ele elucidava o efeito multiplicador da riqueza social geral exercido por seu conceito orientado pela demanda preferencialmente com o exemplo de trabalhos evidentemente inúteis. Em seus escritos, ele demonstrava uma queda especial pelos projetos estatais de construção de pirâmides.

5 [13] Uma renda adicional seria o auxílio financeiro para crianças, por exemplo. Já o auxílio social e principalmente as diversas prestações da seguridade social têm o rótulo de “rendas substitutivas”.

6 [14] Penso aqui, por exemplo, na diferença entre as liberais regulamentações americanas sobre a posse das armas de fogo e as normas relativamente mais restritivas da Europa.

7 [15] A sociedade da mercadoria tem um conhecimento assustadoramente pequeno sobre os contextos reais e sociais criados por ela própria. Pelo fato de esses contextos serem organizados como acoplados aos fluxos monetários, o conhecimento sobre eles é disperso e sempre pontual. Uma função central de qualquer movimento voltado para uma redefinição da sociedade está em primeiramente levar luz para as trevas. Um exame como esse não é importante só para explicitar a loucura dessa forma de produção. Ele também fornece uma orientação para uma posterior remodelação e também torna claros pontos nos quais o sistema capitalista altamente complexo é vulnerável.


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