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Quando riqueza destrói riqueza

O capitalismo invertido e seus limites

Ernst Lohoff

Publicado em alemão em 2012  Deutsche Version [1]

 O debate nas ciências sociais naturalizou o conceito de capitalismo financeiro para designar a etapa atual de desenvolvimento de nosso sistema econômico. Até os anos de 1970, acumulação de capital significava sobretudo capital empregado na produção de bens; atualmente isso significa, antes de tudo, acumulação acelerada de títulos financeiros. Já Karl Marx diferenciou capital fictício, que aumenta nossa riqueza financeira abstrata, e capital funcionante, que amplia a nossa riqueza sensível-material concreta. Com o triunfo do capital fictício, tornou-se previsível a extinção da riqueza sensível-material, e, com ela, das bases de nossa existência.

Uma análise do capitalismo em sua forma atual deve levar em conta a ascensão da indústria financeira como o verdadeiro motor da economia. Mas qual é a função e o caráter das mercadorias do mercado de capital e porque os mercados de dinheiro e de capital ascenderam como o verdadeiro motor da economia?

Dificilmente alguém pensaria na teoria de Marx para buscar uma resposta para essa questão. No entendimento corrente, a crítica da economia política remete toda formação de capital à utilização de trabalho vivo e considera a atividade do mercado financeiro como um jogo de soma zero, que somente redistribui a riqueza existente. No entanto, essa concepção fica muito aquém daquela que Marx desenvolveu em sua obra principal. De maneira alguma existe em O Capital a suposição de que a formação de capital deva sempre ter a sua origem na produção prévia de valor. Porque Marx diferenciou sistematicamente entre riqueza sensível-material, por um lado, e riqueza abstrata, por outro lado, ele pôde diferenciar conceitualmente entre dois tipos fundamentais de capital, com origens inteiramente distintas. No “capital funcionante” (capital industrial e capital comercial), a sua reprodução pressupõe de fato uma produção real de valor, por meio do dispêndio de força de trabalho, na produção de bens e serviços. Ao contrário, na forma do “capital fictício”, baseado em papeis no mercado financeiro, isto é, no comércio de títulos de propriedade, transforma-se antecipadamente em capital a expectativa de um valor futuro, ainda a ser criado, que talvez nem mesmo seja produzido.

O capital fictício

A emergência do capital fictício, e com ela a decorrente inversão na sequência temporal da formação do valor e do capital, só pode ser compreendida quando se lança um olhar sobre a relação especial que estabelecem entre si o comprador e o vendedor nos mercados de capitais. Ela difere fundamentalmente das relações nos mercados de bens, especialmente nos seguintes aspectos: o vendedor de carros ou de lápis se desfaz de seus bens de uma vez por todas e deixa a utilização dos valores de uso somente para os compradores. Estes andam por aí de carro ou roem o lápis pelos arredores enquanto o vendedor pode dispor do dinheiro recebido em troca. As coisas são muito diferentes com a venda de títulos de propriedade. O comprador entrega seu dinheiro ao vendedor, mas não perde de modo algum suas pretensões sobre ele. Produz-se uma dupla utilização da mesma soma de dinheiro.

Marx explicou esse mecanismo a partir do exemplo do crédito: o prestamista toma posse de uma determinada soma de dinheiro, assumindo a obrigação de restitui-la após um período de tempo e de pagar ao credor os juros relativos ao prazo. Com esse crédito, o prestamista pode agora investir, adquirir bens etc. No entanto, o credor não renuncia de forma alguma ao valor de uso de seu dinheiro. Ao contrário, precisamente por permitir que alguém faça uso dele, ele próprio também o utiliza. Mais precisamente, ele utiliza o seu valor de uso como capital potencial, já que fornece o seu dinheiro somente para recuperá-lo acrescido. Com isso, segundo Marx, torna-se “a mesma soma de dinheiro […] capital para duas pessoas”. Graças a dupla utilização do valor de uso dessa soma de dinheiro, também seu valor de troca tem uma existência dupla. Uma vez como soma de dinheiro inicial transferida para os prestamistas, e outra vez como reivindicação do credor de ser reembolsado e receber os juros pela antecipação de um valor ainda não criado.

A criação de capital fictício adquire uma nova qualidade logo que as próprias pretensões monetárias recebem novamente a forma de mercadorias (ações, títulos de dívida, derivativos etc.) e podem ser transferidos a vontade. Nesse caso, o reflexo do capital inicial participa da circulação de mercadorias e capital tanto quanto a soma original de dinheiro: por exemplo, uma ação, enquanto capital fictício, não representa capital real apenas para o seu proprietário atual, mas também quando se considera o processo econômico global. A duplicação do capital inicial é transformada em realidade social.

Durante seu tempo de vida, o capital fictício não é nem um pouco menos realidade social que o capital funcionante. É outra a razão do seu caráter fictício: ao contrário do capital funcionante, a sua existência é evanescente e fantasmagórica. Também o capital funcionante pode sair de cena, por exemplo, quando a empresa vai à falência. No entanto, enquanto o capital funcionante é utilizado, ele é imperecível. Sua respectiva forma concreta mantém seu corpo: dinheiro é investido, máquinas e matérias-primas são consumidas, mercadorias produzidas são vendidas. Mas o valor representado se conserva nessas constantes mudanças de forma. O capital fictício, porém, é capital com data de validade marcada. Desaparecer no ar faz parte da sua forma de existência. Tome-se por exemplo um crédito. Quando a dívida é liquidada, o credor recupera o dinheiro que emprestou mais os juros; consequentemente, desaparece o reflexo e com isso o capital social adicional. A realização do capital fictício significa sempre o seu fim definitivo.

Acelerado na crise

Capital é somente uma outra palavra para a transformação do dinheiro em mais dinheiro. Capital que não cresce não é capital e perde seu direito de existência. Isso se aplica tanto para cada capital individual quanto para o capital total do sistema. Assim que se interrompe temporariamente o crescimento do capital total, a economia mundial precipita-se na crise.

O crescimento do capital total, imprescindível para o modo de produção capitalista, pode acontecer por duas vias: por meio de um aumento da produção real de valor ou por meio de um aumento da antecipação de valor. Desde o início do desenvolvimento capitalista até os anos 1970 o acréscimo de capital funcionante baseado na utilização  de trabalho humano foi o principal portador da acumulação geral. Com a chegada da terceira revolução industrial que em todos os setores expeliu o trabalho vivo do processo de produção, obstruiu-se de uma vez por todas esse meio. Foi preciso então um novo fundamento para a acumulação do capital, e ele foi encontrado na criação acelerada de capital fictício. Desde os anos de 1980 a produção na indústria financeira (a geração sempre crescente de títulos de propriedade) ou seja, paradoxalmente, a superestrutura financeira, tem assumido o papel de “indústria de base”.

Com a passagem ao capitalismo invertido, o sistema econômico vigente abriu uma nova margem de desenvolvimento. De qualquer maneira, o capitalismo baseado na capitalização prévia da produção de valor, se lança na sua barreira interna mais rapidamente que o capitalismo clássico, baseado na utilização maciça de trabalho. Sua esperança de vida restringe-se à razão de umas poucas décadas: por causa do caráter evanescente da formação fictícia de capital, a produção na indústria financeira está sujeita a um imperativo de crescimento potencializado em comparação com as indústrias chave do capitalismo clássico. Enquanto o capital funcionante manteve a marcha da máquina capitalista total, as indústrias de crescimento deviam se encarregar de um aumento da produção do valor somente em relação ao período precedente. Mas para que o capital fictício possa manter a marcha do processo geral de acumulação, a nova emissão de títulos de propriedade deve garantir adicionalmente a renovação dos estoques de capital da sociedade num todo: por um lado, está para ser novamente ocupado o lugar dos títulos de propriedade que expiram; por outro lado, uma parte significativa do capital gerado na indústria financeira que fluiu para a economia real foi despendido em consumo; isso aplica-se entre outras coisas aos gastos do Estado financiados por crédito e ao crédito privado para o consumo. O capital-dinheiro consumido dessa maneira deve uma e outra vez ser substituído por meio de uma nova antecipação de valor futuro. Quanto mais tempo o capitalismo se processa dessa maneira, tanto mais rápido crescem as massas antecipadas e já queimadas de produção de valor que devem ser arrastadas como um fardo.

Ainda mais: embora com a produção de capital fictício a formação de capital tenha se emancipado da produção anterior de valor, com isso não foi cortada toda referência à economia real. A antecipação sistemática de riqueza futura só pode se manter enquanto existem (ou são construídos) determinados portadores de esperança por fora da esfera financeira, aos quais possam apontar de maneira mais ou menos credível as expectativas monetárias futuras. Assim, o boom da bolsa dos anos 1990 viveu da ideia de que o novo setor de TI (tecnologias da informação) que surgia naquele momento permitiria mais cedo ou mais tarde conseguir lucros enormes, e o boom dos Subprime dos anos 2000 baseou-se na ilusão de um aumento contínuo dos preços dos imóveis. Essa dependência em relação aos portadores de esperança na economia real representa o calcanhar de Aquiles do capitalismo invertido. A oferta de pontos de referência na economia real com a qual possam se vincular as esperanças de rendimentos não cresce de maneira alguma no céu.

Após o crash de 2008, a dinâmica de criação de capital fictício deu outra vez um pulo e vai atualmente (na primavera de 2015) de vento em popa. Em abril de 2015 o índice DAX[1] [2] atingiu uma nova marca, um mês mais tarde também o índice DOW Jones. No entanto, se se levam em conta as condições desse boom, ele registra como o capitalismo impulsionado pelo mercado financeiro se aproxima cada vez mais de sua barreira histórica. As fases anteriores de boom – pensemos na época da new economy – baseavam-se ainda na criação de capital fictício interna ao setor privado. Ao contrário, o atual incremento baseia-se no papel extremamente ativo dos Bancos Centrais na nova produção de capital fictício. Essa aquisição em larga escala de títulos públicos falidos, que assume com isso os títulos originados nos bancos privados, acumulou uma necessidade de desvalorização; mas sobretudo com a sua política de juros negativos dos  Bancos Centrais há anos empurra capital fictício fresco nos mercados de capitais. Sob o rótulo do combate à deflação, a política monetária não tem hoje outro conteúdo do que criar bolhas especulativas, como com os meios de criação de dinheiro, numa espécie de parceria público-privado. Que isso mais cedo ou mais tarde vai estourar é tão seguro quanto o amém na igreja.

O sacrifício dos nossos fundamentos vitais

Após cada grande crash, são necessários novos pontos de referência da economia real para que a produção de capital fictício possa voltar a toda máquina. Quando, após a queda no outono de 1987, iniciou-se a curta época de ouro do capitalismo invertido, o setor de TI colocou-se, com seus então novíssimos produtos e serviços, agora tornados onipresentes, no centro da capitalização das perspectivas de rendimentos supostas ou reais. Hoje não se vêem mais radiantes protagonistas  como aqueles. Entre todos os processos da economia real desponta mais provavelmente a capitalização dos recursos naturais, que desperta expectativas de lucro altíssimas. Um exemplo disso são as patentes genéticas. A transformação dos direitos de uso de partes da herança coletiva natural da humanidade em propriedade particular representa um duplo rendimento para o sistema de produção de riqueza abstrata. Por um lado, transforma um bem livre “sem valor” em capital e, por outro lado, ao emitir ativos de empresas de biotecnologia ou pegar crédito, torna-se novamente para esse capital um ponto de referência para a criação de capital fictício.

Ao contrário, no que diz respeito à riqueza concreta-sensível, o resultado é devastador. A biodiversidade de cultivos e animais, resultado de séculos de criação, cai vítima da privatização dos pools genéticos. Isso torna os produtores agrários tributáveis. Onde quer que o capitalismo invertido descubra para si um novo recurso natural e extraia o seu (último) mel, tem-se a mesma imagem. A salvação provisória do sistema de produção de riqueza abstrata vai junto com a destruição da riqueza concreta-sensível e dos fundamentos da vida humana. Essa lógica irracional experimenta um agravamento extremo em fenómenos como a especulação com as matérias primas e a apropriação de terras. A iminente escassez de recursos chave transforma terras anteriormente quase sem valor em cobiçado capital futuro. E porque é previsível que essa fúria homicida (Amoklauf) contra os fundamentos naturais da vida fará disparar os preços do que resta, quem assegurar primeiro o poder de disposição produz riqueza capitalista.

Soma-se a isso a geração de riqueza capitalista adicional por meio da introdução de novos métodos de destruição da natureza. Pelo menos no que diz respeito aos EUA, esse foi um fator absolutamente central para a recuperação da situação econômica após o crash de 2008. O boom que experimentaram as bolsas de valores dos EUA nos últimos anos merece o nome de Fracking-Boom.[2] [3] A repentina ascensão dos EUA a exportador de petróleo e os enormes investimentos nessa tecnologia do tipo “depois de nós o dilúvio” forneceram aquelas perspectivas de ganhos que eram necessárias para transformar em capital fictício as torrentes de dinheiro dos bancos centrais dos EUA. Capital fictício que levou novamente a economia dos EUA ao caminho do crescimento.

Na Alemanha faz-se notar num terreno diretamente perceptível como a capitalização intensificada das bases naturais contra-ataca sobre as condições de vida da população em geral. Na busca de oportunidades de investimento para o capital produzido na industria financeira, desde o crash de 2008, tendo em vista a política de baixas taxas de juros, têm fluido meios gigantescos para o setor imobiliário. Mas como isto depende da terra, recurso natural não renovável, o reflexo é a subida acentuada dos preços dos imóveis, especialmente nas grandes cidades. Para o sistema de riqueza abstrata esse desenvolvimento evidentemente é um ganho. A fortuna que o parque imobiliário representa disparou abruptamente. Para as pessoas que estão à procura de um teto sobre sua cabeça, as coisas se apresentam de outro modo. Comparado com o boom de países como a Turquia ou o Brasil, o desenvolvimento na Alemanha é, aliás, ainda moderado. A explosão dos preços dos imóveis desempenha um papel muito mais importante para a economia daqueles países e por isso os inflamados protestos contra essa apropriação do território são reprimidos com toda dureza. Tal como numa lupa, isso mostra que, do ponto de vista da riqueza concreta-sensível e das necessidades existenciais das pessoas, não só o colapso do capitalismo invertido representa uma catástrofe, mas já é desastroso o seu funcionamento continuado.

 


Capitalismo invertido

O conceito de “capitalismo invertido” (derivado do latin inversio = Umkehrung, Umstellung) designa o capitalismo contemporâneo determinado pela dinâmica do mercado financeiro. Diferente da expressão descritiva corrente de “capitalismo dominado pelo mercado financeiro”, este neologismo remete a uma determinada teoria da acumulação capitalista. Em comparação com o capitalismo clássico, a relação entre a superestrutura financeira e a economia real virou de cabeça para baixo. A reprodução do capital social total não se baseia mais em primeiro lugar na produção de bens mas sobretudo na formação de capital fictício por meio da indústria financeira.

 


Valor de uso e valor de troca

O entendimento corrente faz equivaler o valor de uso com a utilidade concreta-material de um bem. Ao contrário, a crítica da economia política reserva a categoria valor de uso para o mundo das mercadorias e utiliza-a de maneira puramente analítica e não empática. Cada mercadoria tem um duplo caráter. Enquanto valor de uso deve poder satisfazer alguma necessidade de um comprador potencial, enquanto portadora do valor de troca representa riqueza social abstrata. No mercado de bens sobrepõem-se parcialmente a visão de Marx com a noção corrente do valor de uso enquanto utilidade concreta-material de uma coisa. Mas Marx utiliza a noção para aquelas mercadorias cujo valor de uso tem um caráter meta-sensível [übersinnlich], pois ele consiste no aumento da riqueza social abstrata. Assim, a mercadoria força de trabalho possui o valor de uso especial de produzir mais-valia. E na medida em que o dinheiro é negociado nos mercados financeiros enquanto mercadoria, seu valor de uso consiste aqui em servir como capital potencial.


Tradução: André Villar e Javier Blank

Original: Wenn Reichtum Reichtum vernichtet. 20.07.2015

Disponível em: http://www.krisis.org/2015/wenn-reichtum-reichtum-vernichtet/ [1]

 

[1] [4] N.T.: O índice DAX (antigamente, em alemão: Deutscher Aktienindex) é uma relação das 30 companhias abertas de melhor performance financeira da Alemanha, com base no sistema Xetra da Bolsa de Valores de Frankfurt.

[2] [5] N.T.: Significa que o boom está basado em grande parte nas expectatitvas de lucro relativas ao Fracking, uma tecnologia de extração não convencional de gás.

 


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[3] [2]: #_ftn2

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