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O renascimento da relevância sistêmica

Como a crise do corona nos mostra que devemos organizar nossa sociedade de maneira diferente

Daniel Nübold

Tradução: Marcos Barreira

Deutsche Version [1]

O conceito de relevância para o sistema está experimentando neste momento um renascimento notável. No decorrer da crise econômica de 2008, ela se inseriu no contexto do resgate financeiro dos bancos por parte dos Estados. Os bancos eram supostamente a causa da crise e, por isso, a indignação geral foi grande, fazendo do termo “bancos necessitados” o mais repulsivo de 2008. O governo alemão da época declarou todo  o sector bancário como sendo sistemicamente relevante e, desse modo, criou a base para o apoio financeiro. E de fato: tão logo se entenda a crise naquele momento também como crise do meio monetário, a avaliação por parte dos principais agentes de que esse meio era sistemicamente relevante é inteiramente verdadeira. É uma das contradições internas da “nossa economia” que estamos amarrados àquilo que nos leva à crise, assim como o viciado em drogas sabe muito bem que se agarra na agulha que o destrói.

O que é relevante para o sistema?

Mesmo assim, muitas pessoas perceberam que havia algo errado nesse entendimento da relevância sistêmica. Os protestos da época, no entanto, não foram dirigidos contra a lógica sistêmica de onde veio a crise, mas apenas contra o capital financeiro alegadamente “mau” que contrastava com a economia real supostamente “boa”. Para esclarecer: estes são dois lados da mesma moeda. Ambos se condicionam e não podem ser pensados separadamente. Hoje vemos diversas atividades sendo consideradas relevantes para o sistema. Entre elas estão os bancos, mas principalmente setores cujos serviços e produtos precisamos com urgência para a nossa sobrevivência: fornecimento de água e energia, alimentação, higiene, saúde, cuidados e assistência, transporte e circulação, mídia e internet, etc.

Muito antes da pandemia da covid 19, os bombeiros da Austrália, que combatiam outro desastre natural, os enormes incêndios florestais, eram chamados de “heróis”. De repente, redescobrimos os grupos profissionais cuja utilidade (também se poderia dizer: valor de uso) têm um impacto direto na nossa vida cotidiana. A crise trouxe-nos tais “heróis da vida cotidiana” de muitas outras profissões.

Precisamente porque nega-se a algumas áreas o atributo de “sistemicamente relevante”, assistimos a uma reflexão sobre o essencial. Discutimos, por um lado, o que é necessário para a sociedade e, por outro lado, a que ela pode renunciar. Farmácias? Devem continuar abertas! Coleta de lixo? Claro que precisa continuar! Companhias aéreas? Fabricante de gloss labial de secagem rápida com efeito glitter? Provavelmente, é aí que as opiniões diferem.

E os bancos? Quando, em meados do ano passado, o Deutsche Bank abandonou o sector de investimento e muitos funcionários ficaram desempregados, a solidariedade do público foi limitada. Sempre que se discute o fechamento de um hospital na Alemanha, as emoções afloram e debate-se apaixonadamente. O que faz a diferença?

Ao passo que precisamos de hospitais quando estamos com a saúde debilitada, o uso que a sociedade faz do setor financeiro não é imediato. Essa instituição existe apenas porque o dinheiro é o meio principal da nossa mediação social. Não precisamos de dinheiro para plantar batatas, construir estradas, costurar ou soldar cabos de alto-falantes. O que se exige são matérias-primas, meios de produção e as respectivas competências. E, no entanto, também é preciso dinheiro! Isso não porque a própria coisa o torne necessário, mas porque, no atual contexto social, é apenas o dinheiro que reúne as pessoas qualificadas e os recursos necessários na forma em que resultam os respectivos produtos: batatas, estradas, camisas, alto-falantes.

O dilema da administração da crise

A pandemia da covid 19 é, sobretudo, uma ameaça à saúde, mas traz também consigo uma crise econômica e social. Os três momentos estão intimamente relacionados. Para contrariar a crise sanitária, os governos estão adotando medidas que comprometem gravemente a vida pública e privada. Essa é a tarefa do aparelho estatal. Mais ainda: ele se legitima por meio do compromisso com a proteção da vida da sua população.

Do ponto de vista econômico, no entanto, as medidas são enormemente prejudiciais. Se as empresas permanecem fechadas para evitar a propagação do vírus, sofrem duras perdas econômicas. Em termos econômicos, estamos inicialmente diante da falta de demanda. Não porque esta carece de meios financeiros, mas, pelo contrário, porque está em grande parte impossibilitada de aparecer como demanda. Se este estado de coisas continuar por muito tempo, a situação muda. As empresas têm de despedir funcionários ou até mesmo tornar-se insolventes. O problema da demanda evolui então para uma crise econômica de verdade, pois há uma falta efetiva de meios financeiros.

Então, para além da ameaça à sua vida biológica, as pessoas são confrontadas com outra ameaça, nomeadamente a da sua existência econômica. O Estado se propôs igualmente a tarefa de protegê-las neste aspecto, no qual ele também obtém sua legitimação. Agora, porém, encontra-se diante do dilema de que tem de fazer as duas coisas, mas uma à custa da outra.

Existência vs. Vida

Mesmo que se tenha divergido muito nas últimas semanas quanto ao grau em que uma máscara ajuda a combater a propagação da doença, sabemos em princípio o que deve ser feito para garantir a proteção da vida. Laboratórios de pesquisa do mundo inteiro estão se adaptando aos desenvolvimentos médicos em um ritmo nunca antes visto na história da humanidade. Assistimos as fábricas de cerveja produzirem desinfetantes para este fim e os fabricantes de automóveis descobrirem por conta própria a produção de respiradores. A riqueza material da nossa sociedade permite um potencial mais do que suficiente para lidar com uma ameaça como o coronavírus.

Mas numa sociedade quase inteiramente organizada segundo os princípios que podem ser descritos como economia de mercado ou lógica capitalista, não é a vida que tem primazia. A vida depende da existência econômica. Sem a segurança geral da existência econômica, rompe-se todo o contexto social, o que também significa que a proteção da vida é descartada. Já não se pode fabricar medicamentos, os hospitais não podem mais funcionar, nem os alimentos podem ser cultivados.

Um mundo em que possamos levar não só uma vida segura, mas mesmo uma vida boa, deve sobreviver sem o que descrevi como “existência”. A mediação social deve ser orientada para as necessidades das pessoas e para as condições materiais que respondem a tais necessidades e, assim, não mais para a máxima valorização do capital. Embora esta pandemia esteja nos tornando mais conscientes de quais são as atividades e os produtos que realmente importam, não estamos em condições de nos livrar de todas aquelas atividades que, no momento, seria melhor deixar que desaparecessem. Nós reconhecemos o que é relevante. Agora precisamos de um sistema, ou melhor, de um contexto de vida que corresponda a tais relevâncias, para que possamos falar sem hesitação em “relevância sistêmica”.


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