31.12.2015 

Fugas para frente

Ernst Lohoff

Publicado em alemão em 2000 Deutsche Version

Crise e desenvolvimento do capital

“A produção capitalista tende constantemente a superar os seus limites imanentes, mas os supera com meios que a fazem colidir com esses limites numa escala nova e mais poderosa. O verdadeiro limite da produção capitalista é o próprio capital”.— MEW 25, . 260

 

O processo de crise e os eventos de crise

É perceptível que as vigas estão ruindo. Especialmente na periferia, o perfeito mundo da globalização e do boom do capitalismo de cassino é assombrado, com intervalos cada vez mais curtos, por maiores ou menores irrupções de crise. Em 1995, a crise do México e a debilidade do dólar por ela provocada criaram enorme suspense nos mercados financeiros transnacionais. Em 1997, os “Tigres asiáticos” e a América Latina experimentaram uma rápida sequência de colapsos econômicos. A Rússia, de qualquer maneira, é um caso perdido. Mesmo o Japão, durante muito tempo considerado um modelo de sucesso, chafurda em recessão, explosão da dívida estatal e um superendividamento irremediável do setor bancário. Apenas em aparência, pode-se falar dos sucessos da economia dos Estados Unidos. Eles se baseiam apenas em uma absurda economia de déficit, a maior pirâmide especulativa da história. “Em 1998, o déficit em conta corrente rompeu a barreira de 200 bilhões de dólares, em 1999 superou os 300 bilhões e, em janeiro de 2000, alcançou os 400 bilhões. Do mesmo modo, a dívida bruta externa subiu rápida como um foguete: mais de dois trilhões de dólares em janeiro de 2000, mais de três trilhões de dólares dois anos mais tarde” (Die Zeit, 5. Janeiro de 2000).

No entanto, a festa no Ocidente não se deixa estragar tão facilmente. É notória a evocação da cura pela fé. Nem mesmo a torrente de previsões negativas alteram os ânimos. Ao contrário. Enquanto foi possível restringir os focos de crise atuais e compensar parcialmente os processos de desvalorização na periferia do mercado mundial pela criação acelerada de valor fictício nos centros capitalistas, os ataques de pânicos de ontem legitimaram o estado de ânimo de hoje, do tipo “dont´t worry be happy”. Que nenhuma das turbulências anteriores tenha provocado colapsos na Europa e nos Estados Unidos é imediatamente considerado como prova dos princípios inexpugnáveis dos boons alimentados especulativamente. Como o maravilhoso capitalismo de cassino já funciona há vinte anos, ele, portanto, continuará para sempre. Enquanto a potencial contradição econômica não cessa de se acumular vertiginosamente de mês em mês à espera de uma descarga violenta, a consciência dominante nega o processo de crise histórico geral, dissolvendo-o em inúmeros contextos e, com isso, por fim, ao nível de aleatórios eventos de crise.

A eliminação da teoria marxiana da crise e do colapso

Por estranho que pareça até mesmo o resto da oposição marxista junta suas forças a essa grande empresa de eliminação. Naturalmente a esquerda acentua os lados sombrios da dominação capitalista no século XXI – mas, apesar de todas as diferentes avaliações, ela está pelo menos tão inabalavelmente convencida quanto o neoliberalismo acerca do ilimitado horizonte de desenvolvimento capitalista: “crisis, what crisis?”, é o que se fala em toda parte.

O contraste com a posição de Marx dificilmente poderia ser maior. Para o fundador da crítica da economia política, a crise teve sempre um valor analítico central. Seus escritos de crítica da economia se dirigiam em geral para uma teorização da crise. Duas coisas devem ser apontadas e enfatizadas:

  1. A crise econômica nunca foi um tema complementar para Marx – todo o estudo da gênese e da reprodução do capital foi sempre, desde o princípio, uma análise da crise. A possibilidade da crise já está presente no primeiro capítulo de O capital com a redução dos valores de uso a formas de representação do trabalho abstrato e com a separação da compra e venda através da utilização da mercadoria-dinheiro. A concreção da representação do capital significa, portanto, sempre uma concreção gradual do potencial de crise inerente a estas relações sociais.
  1. A ocupação com as crises cíclicas está ligada à pressuposição de um limite absoluto. As crises cíclicas têm sempre um duplo significado. Por um lado, elas são uma interrupção completamente normal da reprodução, um momento indispensável da renovação da relação de capital. Elas apenas permitem uma descarga dos sempre novos potenciais de crise represados, e abrem, em geral, um espaço de desenvolvimento. Todavia, elas registram igualmente as etapas da aproximação dos limites históricos inelutáveis do modo de produção mediado pelo valor: a sociedade capitalista sempre supera as crises apenas “através da preparação de crises mais extensas e mais violentas e com a redução dos meios de preveni-las” (MEW 4, p. 468), conforme a formulação programática já presente no Manifesto Comunista.

Mas o discurso marxista de nossos dias não quer saber disso. Mesmo quando admite a possibilidade da crise, é para ele um tabu pensar que o capital possa atingir um limite imanente. Por consequência, a tensão interna na análise da crise realizada por Marx é desfeita em favor da crença incondicional no eterno renascimento do capital. Que o desenvolvimento capitalista tenha sido sempre um desenvolvimento atado às crises não diz respeito aos limites do modo de produção burguês, mas, ao contrário, “prova” o quão pouco as crises podem lhe fazer mal. A compreensão da crise de Michael Heinrichs, de caráter quase budista, acerca da ruína dos “Tigres Asiáticos”, é bastante típica do pensamento hoje dominante: “A crise asiática foi o que sempre foram as crises no capitalismo: uma solução violenta para os problemas represados […]. Portanto, é possível uma nova fase de expansão sobre fundamentos reduzidos – até que o represamento de tantos problemas e erros exijam novamente uma crise violenta para resolvê-los” (Jungle World, 2/99). De fato, a passagem soa como um trecho do próprio Marx e principia com uma paráfrase do terceiro livro de O capital. No entanto, seu teor é muito diferente: “as crises são […] soluções violentas momentâneas das contradições existentes, erupções violentas, que restauram momentaneamente o equilíbrio perturbado”, diz no original (MEW 25, p.259). Que efeito podem provocar palavras tão inócuas como “momentâneas” e “momentaneamente”!

Teoria marxiana da crise e o velho momento operário

Se os últimos marxistas hoje desaparecem no nirvana da teoria da crise, isto não se deve apenas à pressão para se ajustar ao espírito do tempo. Temos de lidar igualmente com o ponto final de uma longa tradição. Heinrich e Cia. não são os primeiros a querer se livrar da teoria marxiana do colapso. Já os teóricos da Segunda Internacional e todos os seus epígonos enfrentavam-na sem compreendê-la.

É evidente a razão pela qual a teoria do colapso permaneceu um corpo estranho no pensamento do movimento operário, uma corrente que se compreendia a partir do primado da classe e da luta de classes. Se a luta de classes é considerada a essência mesma da história e o proletariado tem a missão histórica de pôr fim ao capital, como poderia o capital se autodestruir? Seu verdadeiro limite pode e deve, ao contrário, se encontrar na vontade e no poder da classe operária.

Naturalmente, tem-se conciliado formalmente o que é irreconciliável. O discurso aparentemente obscuro sobre “o capital como seu próprio limite” foi traduzido como a tendência imanente do capital de produzir um proletariado cada vez maior e mais consciente.[1] Também as crises cíclicas forçaram o movimento operário a pensar no interior desse sistema de referência. Seu significado limita-se essencialmente a ajudar o proletariado a compreender o caráter nocivo do sistema capitalista – portanto, deve servir como meio de esclarecimento. Essa interpretação permite, ao mesmo tempo, prestar reverência ao grande mestre e inverter o sentido original de sua teoria do colapso.[2]

No entanto, não foi somente a fixação teórica na luta de classes que bloqueou o olhar para a dialética particular de renovação atada às crises e autodestruição final do capital. Antes de tudo, ela permaneceu fora do campo de visão do movimento operário porque, naquela constelação histórica, só podia ter uma relevância limitada. A teoria da crise de Marx antecipa e supõe uma relação do capital que se move sobre suas próprias bases e na qual já não existem as formas pré-modernas de reprodução. Contudo, o capitalismo empírico com o qual Marx se defrontava em sua época estava a milhas de distância desse estágio de desenvolvimento – e, portanto, também do horizonte histórico de crise conceitualmente esboçado nos Grundrisse e em O Capital. Quando Marx quis ver imediatamente, durante o crash de 1857, a primeira crise econômica que começava a se desvencilhar do padrão pré-moderno de crise agrária, como o prelúdio da crise final do capitalismo – o que, em realidade, exigiria várias gerações –, ele pôde apenas se aproximar do problema por antecipação no nível lógico, portanto antes que se tornasse um problema prático para o sistema produtor de mercadorias.

Rosa Luxemburg, a única, junto com Henryk Grossmann, nas fileiras do velho movimento operário, a perseguir o fio da teoria do colapso de Marx, ao invés de amputá-la, afirmou que levaria tanto tempo para a lógica do capitalismo se exaurir quanto a “extinção do sol”. Enquanto exagero polêmico, essa afirmação teve sua justificativa. Nos conflitos sociais da fase de imposição do sistema capitalista mundial, que inclui a primeira metade do século XX, as implicações da teoria do colapso da crítica da economia dificilmente forneceriam orientações práticas e, certamente, não deixavam deduzir instruções dela.

Mais de noventa anos depois, as coisas são totalmente diferentes. É exatamente porque Marx previu antecipadamente o percurso do tempo que a teoria da crise e do colapso pode ser considerada o momento mais explosivo da abordagem marxiana. É tragicômico quando os influentes administradores do legado de Marx declaram-na anacrônica e torcem o nariz quando se referem a ela. A teoria de Marx só poderá experimentar um renascimento se tiver sucesso em trazer à luz e tornar frutífera essa vertente teórica soterrada.

Deslocamento relativo e absoluto do trabalho vivo

A indispensável reconstrução da crítica da economia política de Marx e das implicações de sua teoria da crise não é suficiente. 130 anos depois de Marx ter esboçado pela primeira vez a lógica geral dos limites imanentes do movimento do capital, ela se deixa descrever de forma muito mais concreta do que no século XIX. Além disso, o mecanismo de reprodução e de crise do capital se diferenciou e abriu níveis adicionais de contradições que Marx não podia extrair de suas análises e que escapavam inteiramente ao seu campo de visão. Assim, a atualização da teoria da crise deve visar uma nova formulação – uma formulação na qual, em especial, permanece o enfoque metodológico ineludível de Marx.

O debate marxista sobre a crise tem se centrado principalmente sobre a “lei da queda tendencial da taxa de lucro”. A mudança na composição orgânica do capital, o aumento do capital constante em comparação ao capital variável, é tratada como o alfa e o ômega da análise marxista da crise. Mas algo essencial permanece sempre ofuscado. Com a “lei da queda tendencial”, Marx não indica de modo algum os limites absolutos do capital. Ele antes esboçou o modo como o capital supera provisoriamente seus problemas estruturais e gera uma forma histórica de desenvolvimento. A verdadeira autocontradição da socialização capitalista consiste em que o trabalho vivo produtor de (mais)valor diminui cada vez mais em relação ao capital constante. O capital é seu próprio limite porque, mediado pela concorrência, tende a reduzir a utilização do trabalho vivo ao mínimo, ao mesmo tempo em que conserva o trabalho como a única fonte do valor. Ou, nas palavras de Marx: “O capital é ele mesmo contradição em processo, pois, por um lado, reduz (busca reduzir) o tempo de trabalho ao mínimo, enquanto, por outro lado, coloca o tempo de trabalho com a única medida e fonte da riqueza”.[3]

Ele pode fugir a esse dilema de base – e é exatamente isso que descreve a lei da queda tendencial da taxa de lucro – se o estoque de capital total da sociedade crescer tão rapidamente ao ponto de compensar o contínuo deslocamento da força de trabalho baseada em um dado estoque de capital e, assim, promover o aumento dos lucros em termo absolutos, da massa de trabalho vivo no processo de valorização do valor. De modo algum Marx queria determinar a taxa mínima de lucro que poderia levar a máquina a sucumbir. A queda da taxa de lucro e, com ela, as “causas contrarrestantes”, devem ser compreendidas antes como o preço e a consequência de todo movimento histórico de expansão, sem o qual a relação de capital não pode sobreviver. Por fim, as crises cíclicas devem ser compreendidas como interrupções desse processo de crescimento. O capital alcança seu limite absoluto logo que esse mecanismo de compensação se autodestrói.

O destino do capital depende, em última instância, de quanto ele pode alimentar o processo de utilização do trabalho vivo num determinado nível de produtividade. O método mais simples de compensar, em princípio, a redução da utilização do trabalho por unidade de produto é evidente. Se hoje cinco trabalhadores produzem carros, calças e tomates, onde antes eram necessários dez, então a quantidade de automóveis, calças e tomates produzidos deve dobrar para manter constante a massa de trabalhadores utilizados, e triplicar, para aumentá-la em cinquenta por cento.

Mas uma expansão puramente quantitativa tem seus limites. Como se sabe, o capital não se ocupa simplesmente de produzir a maior quantidade possível de valores de uso, mas, do ponto de vista capitalista, as coisas úteis têm direito a existência apenas como puras formas de representação do valor de troca, o que coloca em questão, irrecusavelmente, o problema de realização desse valor. O consumo da classe trabalhadora permanece sempre, considerando a massa de mercadorias produzidas, subconsumo – que, afinal, é apenas uma condição de existência da mais-valia e do lucro. Quanto mais a taxa de mais-valia aumentar e diminuir a parte do capital variável em cada produto, tanto mais aguda deve ser a manifestação dessa desproporção. O capital, com processo social total, não pode se libertar do problema da realização apenas pela expansão quantitativa dos setores industriais existentes. Uma saída (temporária) surge apenas quando o capital revoluciona sua própria base tecnológica e são abertos novos setores de produção (incluindo a produção de meios de produção), absorvendo massas adicionais de trabalho vivo.

Inovação dos processos e dos produtos

Marx estabeleceu uma estreita relação entre ciclos conjunturais e ciclos de rotação do capital fixo. Essa relação se deixa compreender de forma mais ampla quando pensamos os saltos qualitativos no desenvolvimento das forças produtivas. Quando o desenvolvimento das forças produtivas manifesta-se principalmente na racionalização dos setores produtivos já existentes, o capital deve mergulhar numa fase de estagnação e crise. No entanto, quando ele abre novos e adicionais campos para a utilização maciça de trabalho vivo, o capital pode entrar numa fase de expansão e acumulação acelerada. A construção de estradas de ferro e a expansão das indústrias de aço e carvão a ela ligadas puseram fim à crise dos anos trinta e quarenta do século XIX. O florescimento da indústria química e da eletrificação permitiu superar a “grande depressão” na qual o capital havia caído vinte anos após o boom anterior. Por fim, com a vitória do fordismo, tendo a produção automobilística como indústria chave, foi pavimentado o caminho que levaria da crise econômica mundial ao “milagre econômico”.

A vitória da sociedade da mercadoria pode ser descrita como uma constante fuga para frente, interrompida pela crise e reanimada pelos impulsos das inovações tecnológicas que marcam época. Mas não se deve prolongar esse padrão, supondo-se uma simples equação inovação = boom, como se tornou comum na discussão das chamadas “ondas longas”. Se as revoluções tecnológicas do passado refundaram o sistema capitalista de utilização do trabalho, isto não se deve ao fato de elas terem simplesmente transformado as condições de produção, mas de terem-no efetuado de um modo muito específico. Os descobrimentos dos grandes artesãos-inventores do século XIX (de Siemens e Bell até Edison) e a conjuntura das estradas de ferro abriram esferas adicionais de investimentos, porque, incidindo principalmente na inovação de produtos, criaram mercados que não existia até então. Embora a passagem para o fordismo tenha significado de fato uma transformação dos processos de produção (introdução das linhas de montagem, divisão taylorista dos processos de trabalho), esse processo de inovação tornou possível antes de tudo a fabricação de automóveis, aparelhos elétricos etc., ampliado para além do nicho da produção artesanal e integrando no ciclo de utilização capitalista.

Muito diferente, contudo, é o que ocorre com as inovações de base da terceira revolução industrial. Como consequência direta da aplicação da força produtiva ciência, o efeito principal da microeletrônica não é a criação de novas esferas de investimentos. Ela age em primeiro lugar – atravessando todos os ramos da produção existentes – como uma tecnologia de racionalização par excellence. A utilização adicional do trabalho na produção de computadores, chips, cabos de fibra ótica etc. não guarda qualquer relação com a massa de força de trabalho liberada com a aplicação da microeletrônica em larga escala. Diferentemente do passado, a terceira revolução industrial não pode gerar um impulso autossustentado de acumulação, mas multiplica os potenciais de crise liberados com o esgotamento do boom fordista. Nesse contexto, o barateamento permanente dos novos suportes tecnológicos não age no sentido de obstaculizar a crise, como outrora, quando havia redução do valor dos elementos do capital constante, mas agudiza a crise ainda mais, pois favorece a onipresença desta tecnologia.

Frente a esse desenvolvimento, a tese de Marx de que a cientifização da produção deve fazer explodir a forma da sociedade da mercadoria adquire um substrato empírico. A famosa afirmação dos Grundrisse entra na ordem do dia: “o roubo do tempo de trabalho alheio, sobre a qual se baseia a riqueza atual, aparece como um fundamento miserável contra esta nova […]. Logo que o trabalho deixa de ser, em sua forma imediata, a grande fonte da riqueza, o tempo de trabalho deixa e deve deixar de ser sua medida e, portanto, o valor de troca, a medida do valor de uso […]. Com isso, desaba conjuntamente a produção baseada sobre o valor de troca”.[4]

Dívida estatal, inflação e acumulação

Em última instância, a capacidade de sobrevivência do modo de produção capitalista depende de seu êxito em integrar bastante trabalho vivo no ciclo de produção de valor. Já na crise econômica mundial dos anos de 1920 e 1930, essa dependência se tornou um problema estrutural manifesto em um, até então, único longo espaço de tempo. A ruptura com o passado foi tão profunda que a desvalorização do capital existente, também coligada aos impulsos inovadores correspondentes, não bastava para iniciar sozinha uma nova expansão autossuficiente. A ampliação das atividades estatais, realizada primeiramente de forma incoerente, depois sob o signo do rearmamento e da guerra mundial, pôde colocar fim ao estado de paralisia e conduzir novamente a economia mundial para o crescimento.

O consequente adeus do Estado vigilante passivo foi, portanto, inevitável para fomentar o boom fordista, pois a extensão das novas indústrias exigia uma infraestrutura social abrangente que não poderia, ou poderia apenas de um modo muito limitado, receber a forma de mercadoria, com vistas à geração de lucros. Como poderia ter se desenvolvido uma florescente indústria automobilística se o Estado não tivesse despendido imensos recursos na construção de estradas? Como os eletrodomésticos e os aparelhos eletrônicos de entretenimento poderiam se impor vitoriosamente sem enormes investimentos para o fornecimento de energia em larga escala – que é uma mercadoria não-lucrativa – senão por meio da gestão estatal? Em sentido amplo se encontra nesse contexto também a criação de medidas de proteção do Estado de bem-estar social, necessariamente estatais, com prestações de serviços antecipadas ou simultâneas.

O Estado assumiu obrigações econômicas até então inimagináveis, em vista dos crescentes efeitos sociais do desenvolvimento das forças produtivas, aumentando muito suas responsabilidades de fornecimento das condições materiais da produção de mercadorias. Ele foi requerido também, na mesma medida, pelo desenvolvimento no lado do valor. No nível da empresa, no alvorecer da era fordista, os custos antecipados da utilização do trabalho já eram tão altos que não podiam ser cobertos apenas pelos lucros regulares da valorização do capital. Já aí se tornava necessário o poder de compra adicional dos Estados, para além das receitas fiscais correntes e, sobretudo, uma vasta ampliação da margem de ação para o crédito. Ambos eram realizáveis apenas por meio de uma radical transformação do sistema monetário e da política financeira estatal como um todo.

O processo de produção compreende necessariamente a transformação das muitas mercadorias particulares na mercadoria geral “dinheiro”. Enquanto o próprio dinheiro era uma mercadoria-dinheiro real (metais preciosos) ou seu representante indireto (cobertura em ouro) e a realização do valor permaneceu, dessa forma, estreitamente ligada à utilização do trabalho produtivo executado e realizado noutro lugar, essa realização se mostrou em diversas ocasiões como um buraco de agulha. As crises – como Marx já havia apontado – assumiram sempre a forma de uma aguda ou, no caso da crise econômica mundial, crônica escassez dos meios de pagamento, cujo ponto de partida era a ruptura das cadeias de crédito no âmbito da economia privada. O curso da crise poderia ser descrito como uma espiral descendente deflacionária. O adeus ao “metal bárbaro” (Keynes), a passagem para um dinheiro regulado politicamente – não representando nenhuma riqueza existente arduamente acumulada, mas coberta, em última análise, apenas em vista da futura criação de riqueza – permitiu evitar a estreiteza do gargalo e, através do “defict spending”, superar a estagnação. A mediação do Estado e do dinheiro por ele criado, inserido por antecipação, colocou os muitos capitais em condição de se transformarem em equivalente geral numa escala mais ampla e de iniciar um novo ciclo de produção e de valorização. Isto tornou possível a superação da depressão.

Cada novo mecanismo da superação da crise gera um novo potencial de crise logo adiante. Isso é evidente precisamente nesse caso. A antecipação monetária da utilização de trabalho produtor de valor pode encontrar posteriormente sua confirmação, mas é claro que isso não é obrigatório. Onde a mediação da criação de dinheiro estatal, remetida para o futuro, se revela parcial ou totalmente descoberta, faz surgir dois fenômenos totalmente estranhos aos estágios do desenvolvimento do capitalismo do século XIX. Por um lado, a constante antecipação da criação de riqueza futura se manifestou numa crescente dívida estatal – no entanto, o processo de endividamento não pode prosseguir sem que o processo de valorização seja simplesmente esmagado por esse fardo.[5] Mas ele tampouco pode ser interrompido, pois a crescente debilidade econômica seria imediatamente transformada numa aguda depressão a ser paga com o retorno dos velhos mecanismos deflacionários, em formas mais acentuadas.[6] Por outro lado, a crise provoca a desvalorização do capital real e do capital monetário através da desvalorização da própria mediação monetária. Onde a utilização de trabalho antecipado tem apenas êxito parcial, provoca-se uma insidiosa inflação. Se o trabalho de uma economia nacional se revelar posteriormente inválido em grande escala no mercado mundial, ela pode mesmo mergulhar num processo hiperinflacionário.

Nos anos de 1950 e 1960, a época de ouro do capitalismo, com exorbitantes taxas de crescimento, o sistema de cobertura a posteriori funcionou no essencial: tanto o endividamento estatal quanto a inflação permaneceram moderados. Contudo, isto tinha de mudar na mesma medida em que o impulso de crescimento fordista se esgotava no curso dos anos 1970. Não somente o problema de base – a decrescente capacidade dos capitais para absorver o trabalho produtor de valor na escala necessária – começou novamente a vir à luz do dia: ao mesmo tempo, a solução de crise de ontem se tornou cada vez mais um problema adicional, ameaçando agravar a crise. As perspectivas pouco animadoras da economia mundial no início dos anos 1980 podem ser lidas em alguns importantes indicadores estatísticos. As taxas de crescimento médias nos Estados da OCDE, apesar do aumento do decift spending, caíram 1,4% (entre 1967 e 1976 eram ainda em 4,9%) e a taxa de inflação alcançou 12,6% (contra 6,1% no mesmo período). Sempre novos picos históricos de endividamento estatal (em média 43% do PIB anual para os Estados da OCDE) mostravam igualmente que as margens haviam começado a se estreitar gradualmente.

O adiamento de crise pelo capitalismo de cassino

Já no início dos anos 1980 se encontravam presentes importantes ingredientes para um grande impulso de desvalorização e uma nova depressão. No entanto, os Estados capitalistas saíram da “stagflation” (a coexistência de desvalorização do dinheiro e fraco crescimento) e mesmo o endividamento dos Estados da OCDE, depois de duplicar nos últimos vinte anos, não é considerado hoje um problema tão grave. É claro que as contradições de base não foram suprimidas. A passagem para o capitalismo globalizado somente as “resolveu” na medida em que tais contradições foram elevadas para um patamar inteiramente novo. Se a política monetária expansiva e os programas conjunturais keynesianos, mediados pela antecipação da massa de valor da sociedade como um todo, atingiram o seu limite, então eles devem ser superados pela dinâmica de criação privada de capital fictício. O impulso prévio de futuro econômico como um todo não deve mais estar sob o abrigo estatal, mas antes na esperança de que a valorização de muitos capitais individuais seja bem sucedida e transformada na matéria-prima da riqueza atual. O cálculo coletivo da riqueza privada se tornou a base da economia e a real utilização do trabalho existe somente como apêndice da valorização do capital fictício. Isto não soa apenas como loucura, isto é uma loucura total. Mas é sobre essa loucura que se baseia toda a flor do pântano capitalista há cerca de vinte anos!

Marx desenvolveu, no terceiro livro de O capital, o conceito de capital fictício no contexto do crédito monetário e destacou seu significado para o ciclo de crise. A quintessência dessas considerações é a seguinte: a relativa independência dos circuitos do capital dinheiro, a concomitante ampliação das cadeias de créditos e a acumulação de títulos são o resultado uma crescente escassez de oportunidades reais de investimentos. A hipertrofia da estrutura financeira coloca o capital em condições de obter lucros no jogo da acumulação mesmo quando já se acumulou demasiado, quando realmente já se ingressou no estado de superacumulação e a realização do valor foi interrompida. Se esse processo persiste e crescem as dúvidas sobre o retorno dos fluxos financeiros antecipados, então, mais cedo ou mais tarde, deve ocorrer uma corrida pelo dinheiro e o rompimento das cadeias de créditos. Com o pânico, ocorre uma repentina contração de toda atividade econômica, de todos os títulos acumulados, mas também se desvaloriza o capital. Uma vez que a penúria monetária geral é o ponto de partida de um agudo surto de crise, esta assume a forma de crise financeira.

No século XIX, a superestrutura financeira, que postergou a crise e, simultaneamente, fez com que ela se tornasse mais profunda, tinha limites bastante estreitos. Enquanto o dinheiro se encontrava imediatamente atrelado ao ouro, o momento especulativo encontrava seu lugar no interior do respectivo ciclo conjuntural e já assinalava o ponto central de inflexão da crise. Esse padrão básico permaneceu essencialmente inalterado até o fim dos anos 1970. Isso pode ser visto, entre outras coisas, através do desenvolvimento paralelo entre acumulação real e valor das ações em largos períodos de tempo. No entanto, com o Reaganomics, o movimento especulativo se dissociou dos ciclos conjunturais, transformando-se no real motor do crescimento geral da conjuntura.

O desenvolvimento do índice Down-Jones documenta esse desacoplamento de maneira bastante dramática. Desde sua introdução em 1897, ele cresceu, excetuando algumas oscilações passageiras, em sincronia com a economia dos Estados Unidos. No entanto, foram necessários 66 anos para que o índice das ações atravessasse pela primeira vez o umbral dos 1000 pontos. Apenas em 1982 essa barreira foi permanentemente ultrapassada. Nos 13 anos seguintes seu valor foi quadruplicado. Em 1996, já havia subido para os 6.000 pontos e, por fim, em 1999, alcançou os 11.000 pontos. Com isso, em apenas 20 anos, o índice registrou um crescimento de 1.100%, enquanto o crescimento oficial do PIB americano no mesmo período alcançou menos de 50%!

A automultiplicação especulativa do capital monetário marcou época com a Reaganomics. Esta afirmação não se justifica somente porque nas últimas décadas do século XX a inevitável correção dos valores foi adiada, mas também porque o capital fictício adquiriu um significado no processo econômico global que não pode ser comparado, nem de longe, a qualquer fase anterior do desenvolvimento capitalista.

O capitalismo de cassino promoveu a ruptura de dois resultados históricos estreitamente relacionados. Antes de tudo, ele é responsável pelo repentino desaparecimento da manifesta desvalorização do dinheiro (inflação no mercado de bens). Se a política monetária expansiva dos anos 1970 se manifestou numa desproporção entre oferta e demanda monetária na economia real, o estabelecimento do boom do capitalismo de cassino controlou esse excedente de meios de circulação em grande escala através de sua transformação em capital monetário. Parte substancial da potencial demanda de consumo foi substituída pelo contínuo aumento de reclamações monetárias (ações, obrigações), permanecendo, assim, na estrutura financeira, ao invés de intercambiar imediatamente no mercado de bens. Em lugar de um aumento geral dos preços, ocorre uma “asset-inflation”, como dizem os americanos, isto é, o particular encarecimento do valor das ações, mas também dos imóveis e de outros objetos de especulação. As estatísticas da OCDE são bastante claras a esse respeito. Elas mostram cronologicamente essa relação lógica. Em 1980, a taxa de inflação nos Estados Unidos alcançou o pico de 13,5%. Três anos depois ela caiu para 3,2% no país precursor do capitalismo de cassino. Na Europa o efeito retardou, mas isso não o fez menos dramático. Na França, por exemplo, a taxa de aumento dos preços ao consumidor caiu igualmente do nível inicial em 1980 (13,6%) para menos de 3%, em 1986.

Quando o capital de investimento real pode deitar mão em enormes quantidades de capital monetário via emissão de ações e a posse de ações se torna a base para o crédito ao consumidor em grande escala, a automultiplicação do capital fictício funciona, tanto no lado da oferta como na procura, como um imenso programa conjuntural. Enquanto a cadeia de créditos se mantém e a estrutura financeira incha cada vez mais, os ganhos gerados especulativamente permitem comprar bens de luxo e automóveis como se fossem lucros provenientes da real utilização de trabalho.

A antecipação da criação de valor futuro, cujo veículo é a relação de crédito dos sujeitos capitalistas, adquiriu tal dimensão que faz a antecipação [de valor], por meio da criação de dinheiro estatal, da era keynesiana aparecer, a posteriori, como uma ninharia. No entanto, quanto mais ela conduz para cima, mais profunda será a queda. O desacoplamento dos capitais fictícios da real valorização do valor permanece relativo e não pode se tornar absoluto, mesmo onde a estrutura financeira se tornou, de forma absurda, a base da economia real. Mais cedo ou mais tarde a inconvertibilidade das promessas de valorização deve levar todo o gigantesco edifício especulativo ao colapso. Mas isso não significará de modo algum apenas um retorno ao status quo ante. Com o fim do boom do capitalismo de cassino, a necessidade de desvalorização, acumulada ao longo de vários anos, deve vir à luz em todos os níveis e os limites estruturais dissimulados da ulterior valorização do capital serão abruptamente sentidos. A política não pode deter a iminente desvalorização, mas, na melhor das hipóteses, pode retardá-la e influir nas formas de desenvolvimento da desvalorização. Assim, ela pode ter influência sobre os processos deflacionários e inflacionários, portanto sobre a questão de se, em primeiro lugar, destrói os capitais fictícios ou tenta socializar as perdas através da desvalorização acelerada da própria mediação monetária.

A onda especulativa que Marx descreveu está para o moderno capitalismo de cassino como a primeira locomotiva a vapor para a nave espacial Challenger. Precisamente por isso os marxistas devem, em face da perspectiva aqui descrita, se recordar do que Marx escreveu no New York Dail Tribune, por ocasião da crise comercial de 1857: “Sempre que a especulação ocorre no fim de um determinado período comercial como o imediato precursor do colapso (crash), não se deve esquecer que a própria especulação foi gerada nas fases do período precedente e, por isso, ela mesma é um resultado e uma manifestação (accident) e não representa a causa última e a essência (a final cause and the substance). Os economistas políticos que pretendem explicar as contrações regulares (spasms) da indústria e do comércio através da especulação se assemelham aos filósofos da natureza de uma escola já extinta que considerava a febre como a verdadeira causa de todas as enfermidades”.[7]

25/12/2000

Tradução: André Villar Gomez

Título original: Grosse Fluchten: Krise und Entwickung des Kapitals.

 

[1]  Karl Kautsky, o guardião do Santo Graal da ortodoxia marxista, destacou o verdadeiro contraste entre a oposição da teoria da crise orientada pela análise da crise e a atitude sociológica: “A perspectiva do socialismo não depende da possibilidade ou necessidade do futuro colapso ou declínio do capitalismo, mas da expectativa que possamos acalentar de que o proletariado se fortaleça o bastante” (Citado por Henryk Grossmann em: Das Akkumulations und Zusammenbruchsgesetz des kapitalistischen Systems, Frankfurt/M., 1970, p. 73).

[2] Mesmo onde Marx, em seus próprios escritos, parece aplainar a estrada do sociologismo, permanece presente um momento da teoria do colapso, que não se encaixa direito nele. Isto é particularmente verdadeiro para o Manifesto Comunista. Enquanto, por um lado, a ênfase na luta de classes ganha a sua forma clássica (“toda história até hoje é uma história da luta de classes”) e a classe trabalhadora é elevada ao patamar de um novo demiurgo, Marx, por outro lado, elege a metáfora do “coveiro” para o proletariado. Mas os coveiros, via de regra, costumam enterrar apenas o que já está morto, sem a sua intervenção.

[3] Karl Marx, Grundrisse der Kritik der politischenÖkonomie, Berlin 1974, p. 593.

[4]  Marx, Grundrisse, p. 593.

[5] Bancarrotas dos Estados ocorrem regularmente desde os princípios da história do capital. No entanto, é muito diferente se um Estado declarou falência quando se apresenta somente como consumidor de bens de luxo (militar, corte), correspondendo a menos de 5% da riqueza existente, ou um Estado moderno, insubstituível para a reprodução social cotidiana, administrando de 40 a 50% do PIB.

[6] Os atuais excedentes orçamentários dos Estados Unidos contradizem essa afirmação apenas em aparência. Porque eles são somente o produto de deslocamento da criação de dinheiro sem cobertura para o mercado financeiro transnacional e, portanto, um agravamento no desenvolvimento do capital fictício, como veremos adiante.

[7]  MEW 12, p. 3