Ernst Lohoff
[N.T.: O texto aqui traduzido é um fragmento do “Acumulação de capital sem acumulação de valor. O caráter fetichista das mercadorias do mercado de capitais e seu segredo”, publicado por Ernst Lohoff na Revista Krisis, 1/2014]
Mercadorias do mercado de capitais – Mercadorias de segunda ordem
Em cada venda no mercado de bens estão implicadas duas mercadorias: o dinheiro, a mercadoria geral, e uma mercadoria particular, portadora de um determinado valor de uso. Na cessão de capital dinheiro em troca de uma obrigação monetária não transferível, a mercadoria geral é vendida enquanto capital potencial, sem se defrontar com uma mercadoria particular. Ao mesmo tempo, o proprietário do dinheiro muda de função. Enquanto no mercado de bens sempre opera como comprador, nessa venda especial o proprietário do dinheiro está do lado dos vendedores. A transformação do título de propriedade numa mercadoria negociável reproduz as relações estabelecidas nos mercados de bens de duas maneiras. De um lado, assim como no mercado de bens, na venda entram em relação recíproca a mercadoria geral e uma mercadoria particular. De outro lado, o dono da mercadoria geral encontra-se novamente na posição habitual de comprador, pois na aquisição do título de propriedade ele comprou uma mercadoria. Contudo, trata-se de um tipo muito específico de mercadoria; portanto não se pode falar de um retorno à relação social predominante no mundo das mercadorias do mercado de bens.
Antes de tudo, essa secção do universo das mercadorias só existe pela transformação do capital dinheiro em uma mercadoria. A mercadoria que ali se negocia representa portanto um tipo derivado de mercadoria: uma mercadoria de segunda ordem. Enquanto nos mercados de bens transborda uma variedade multicolor de valores de uso diferentes, neste mercado reina uma monotonia absoluta. Nos mercados de dinheiro e de capital movem-se exclusivamente mercadorias com um único valor de uso: sua aquisição promete aos compradores a transformação do dinheiro em mais dinheiro. Mas, acima de tudo, a estranha origem dessa mercadoria se reflete nas suas propriedades particulares. Enquanto reflexo da mercadoria capital-dinheiro ela oferece aos seus potenciais compradores não só o seu valor de uso, mas também mostra toda a estranheza que já descobrimos nessa mercadoria. Trata-se, antes de tudo, de um percurso de vida peculiar: assim como a mercadoria capital-dinheiro, as mercadorias de segunda ordem só existem em estado de venda. Elas se originam na sua venda inicial e desaparecem na sua realização. Enquanto reflexo do capital-dinheiro originário, as mercadorias de segunda ordem não só têm o seu preço, mas representam capital social válido até a sua vendabilidade ser ameaçada. Com a emissão dessa mercadoria, tal capital forma-se adicionalmente ao capital-dinheiro dos vendedores de capital-dinheiro, e dissolve-se novamente com a sua realização.
As dimensões ignoradas do fetiche do capital
Na sociedade capitalista os homens não se relacionam conscientemente entre si, mas os produtos do trabalho medeiam o vínculo social. Marx designa essa inversão como fetichismo. O problema do fetiche pode ser designado como o leitmotiv da crítica da economia política. Já no livro I d’O Capital, Marx se dedica a decifrar o fetiche da mercadoria e a sua forma desenvolvida, o fetiche do dinheiro. No livro III d’O Capital finalmente chega, no contexto de sua exposição, ao capital portador de juros como a última das três formas de fetiche que se superpõem, e que chama de fetiche do capital.
O que todas essas formas de fetiche tem em comum é que a mediação social real permanece oculta para os protagonistas e aparece como uma propriedade das coisas. Esse absurdo, como enfatiza Marx, chega ao seu ponto mais alto no fetiche do capital. A transformação do dinheiro em mais dinheiro, resultado de relações sociais complexas, aparece na forma do capital portador de juros como uma propriedade inerente ao dinheiro:
“O capital aparece como fonte misteriosa, autocriadora dos juros, de seu próprio incremento. A coisa (dinheiro, mercadoria, valor) já é capital como mera coisa, e o capital aparece como simples coisa; o resultado do processo global de reprodução aparece como propriedade que cabe por si a uma coisa […] Na forma do capital portador de juros, portanto, esse fetiche automático está elaborado em sua pureza, valor que valoriza a si mesmo, dinheiro que gera dinheiro, e ele não traz nenhuma marca de seu nascimento. A relação social está consumada como relação de uma coisa, do dinheiro, consigo mesmo […] Torna-se assim propriedade do dinheiro criar valor, proporcionar juros, assim como a de uma pereira é dar peras. E como tal coisa prestadora de juros, o prestamista de dinheiro vende seu dinheiro” (MEW 25, S. 405[1]).
Nesta passagem frequentemente citada, Marx está olhando para uma dimensão específica do fetiche do capital, a saber, a maneira como se manifesta e deve se manifestar a mediação social na consciência dominante. A relação social de mediação na qual o capital por si só cria capital é ali ocultada. A transformação do dinheiro em mais dinheiro, na realidade resultado de relações sociais totalmente específicas, aparece em seu lugar como sendo resultado do capital nas diferentes formas de manifestação de sua propriedade natural inerente. Assim, torna-se invisível que tão somente a relação do capital funcionante com a força de trabalho e sua potência de criar mais-valia produz valor que se valoriza. Imagina-se, a partir disso, que os meios de produção produziriam valor por si mesmos. Essa ideia fetichista tem dois pontos de apoio. Em primeiro lugar, o comando capitalista sobre a força de trabalho – um ponto já desenvolvido por Marx no Livro I d’O Capital. Porque o capital funcionante incorpora e submete o trabalho vivo, as forças produtivas do trabalho aparecem como forças produtivas do capital. É enquanto um capital com essa potência inerente que aparece no pensamento burguês, que não faz distinção entre valor de uso e valor de troca, nem do valor de uso específico da força de trabalho de ser capaz de produzir valor. No Livro III d’O Capital um ponto de vista adicional entra em cena. O capital funcionante aparece equipado com sua capacidade natural de auto-valorização porque o pensamento dominante projetou neste o movimento particular do capital portador de juros. Com a mercadoria capital-dinheiro abre-se a oportunidade para cada possuidor de dinheiro de multiplicar seu dinheiro sem passar pela produção de bens. Com a existência do capital portador de juros, esse fato é mistificado nas propriedades naturais de todo capital-dinheiro e atribuído também ao capital funcionante, cuja carreira começa e acaba sempre na forma dinheiro.
Embora essa crítica da falsa consciência necessária seja também adequada e importante, o fetiche do capital tem ainda uma dimensão mais ampla, posta mas não elaborada na exposição de Marx. Nossa análise torna visível essa dimensão: a aparição das mercadorias do mercado de capitais torna o fetiche do capital um fetiche real. Naturalmente o capital não pode se multiplicar por si mesmo, mas tão somente como resultado de uma relação social. Mas a extração de mais-valia através da produção de bens de maneira alguma é a única relação social da qual pode surgir capital. A relação social entre o emissor e o vendedor de uma mercadoria de segunda ordem, nessa sua exclusiva maneira louca, acaba sendo também criadora de capital. Com a proliferação dessas mercadorias de segunda ordem, o capital criou para si uma fonte de acumulação de capital independente de uma anterior valorização do valor, não só do ponto de vista do capital individual mas também considerada a totalidade social. Assim, o fetiche específico das mercadorias de segunda ordem torna o fetiche do capital uma força material tangível, com amplas consequências teóricas: a aparição desse novo tipo de mercadorias quebra a coincidência entre a acumulação de valor e a acumulação de capital!
Infelizmente o debate marxista tem fracassado até hoje em continuar desenvolvendo a crítica da economia política de Marx, e não tem consciência alguma desse segundo momento do fetiche do capital. Em lugar disso, apropria-se do axioma da Economia: acumulação de capital e acumulação de valor são a mesma coisa. Enquanto se enfrenta o regime de acumulação dominado pelo mercado financeiro com essa análise incompleta do fetiche do capital, o seu mistério permanece um livro com sete selos. Pior ainda: a referência à crítica do fetiche, amplamente ignorada pela vulgata do marxismo, pode servir inclusive como uma justificativa teórica superior para ignorar o processo capitalista real. Elmar Altvater proclama com toda a seriedade ex cathedra: “A ideia frequente de um desacoplamento entre a economia monetária e a economia real é uma grande ilusão, devida ao brilho ofuscante do fetichismo do dinheiro e do crédito – como se os altos rendimentos das relações financeiras viessem de si mesmas, como se pudessem ser recolhidos dos cofres dos Bancos, e não devessem ser produzidos na economia real” (Altvater, 2008)[2]. Com essa referência à crítica marxiana do fetichismo Altvater sugere que ele critica a visão predominante desde um ponto de vista da crítica radical da economia política. Na verdade, ele representa aquela vulgata do marxismo que nunca levou a sério a crítica do fetichismo marxiana. O ponto central é que a mistificação da “economia real” enquanto suposta única fonte de criação de capital, deixa o argumento da Altvater em conformidade total com os contos de ninar dos manuais de economia. De fato, ambos igualam a acumulação de valor e a acumulação de capital sem mais delongas. O fetiche do capital enquanto fetiche da mercadoria de 2a ordem não consiste na falsa aparência, segundo a qual o capital poderia também se formar sem uma valorização anterior por meio da produção de bens; em vez disso, do fetiche específico das mercadorias do mercado de capitais resulta que a formação de capital pode se descolar realmente da produção anterior de valor.
A dimensão adicional do fetiche produzida com a aparição das mercadorias do mercado de capitais pode ser resumida em poucas palavras. Com a emissão de mercadorias do mercado de capitais produz-se uma inversão na sequência temporal da produção de valor e mais-valor, de um lado, e de formação de capital, de outro lado. Com a colocação bem-sucedida de uma mercadoria de 2a ordem no mercado de capitais, o valor futuro apresenta-se já hoje enquanto capital, considerada a totalidade social. Trabalho produtivo ainda não efetuado de maneira alguma, e que possivelmente nunca o será, assume a forma de capital. A formação de capital não se baseia aqui portanto na produção de valor mas resulta da antecipação de valor.
No jargão da Bolsa diz-se ocasionalmente que nos mercados de dinheiro e de capital negociaria-se com o “futuro”. Nessa frase aparece uma pista do segredo escondido por trás da acumulação de capital baseada na indústria financeira. A Economia, disciplina responsável pela totalidade econômica, não é contudo capaz nem de começar a compreender, com as suas categorias rudimentares, a reversão temporal que se revela nessa frase. A causa está realmente ao alcance da mão. A Economia iguala a riqueza abstrata com a simples riqueza de bens. Mas no mundo dos bens reina inexoravelmente a eterna lógica temporal: para que algo seja utilizado é preciso que antes tenha sido fabricado. Ninguém pode instalar no seu computador um programa ainda não escrito, ou morar numa casa ainda em estágio de planejamento. Nada muda nessa ordem temporal pelo fato do capital se apropriar da produção de bens e transformá-la na sua produção de mercadorias. A riqueza material-sensível é transformada em valor de uso das mercadorias somente no fim da produção. Um tapete que deve ser tecido na próxima semana representa tão pouco um valor de uso quanto um carro montado pela metade. Porque o valor de uso é afinal o portador do valor de troca, aplica-se evidentemente também essa sequência temporal ao conteúdo real das riquezas existentes na forma de mercadorias do mercado de bens. No movimento do capital funcionante reproduz-se por conseguinte a sequência temporal reinante no mundo das riquezas materiais-sensíveis. Primeiro as mercadorias devem ser produzidas e conseguir ser vendidas, só então pode ser acumulado o valor recém-criado. Desde um ponto de vista que iguala a riqueza capitalista global com a riqueza total nas mercadorias do mercado de bens, compreende-se por si mesmo que o processo de acumulação capitalista geral só pode funcionar de acordo com esse modelo. Um incremento do capital social total baseado em valor ainda não produzido parece tão ridículo quanto a ideia de que poderia-se colher peras de uma árvore ainda não plantada.
Mas a riqueza abstrata é afinal algo bem diferente do que a simples riqueza de bens. Na natureza a colheita de peras encontra-se evidentemente só no final de um longo processo que começa com o plantio de sementes de pereiras. No mundo do fetiche das mercadorias de 2a ordem aplicam-se outras leis. Lá rege o absurdo da realidade. Os mercados de capitais são povoados exclusivamente com representantes dessa flora maravilhosa na qual a fruta se encontra disponível para ser colhida e comida antes que as sementes de pereira sequer tenham criado raízes.
Tradução: Javier Blank
[1] N.T.: Na edição em português: Marx, O Capital, Livro III, Volume IV, Tomo 1. São Paulo, Nova Cultural, 1988, pp.278-9.
[2] Altvater, Elmar (2008): Nicht tot zu kriegen, http://www.das-kapital-lesen.de/?p=66