31.12.2001 

CRISE DA CIDADE E FETICHE DO TRABALHO

A urbanização brasileira e a reprodução crítica de uma sociedade do trabalho pós-catastrófica

Cláudio R. Duarte e Caio B. Mello*

Das promessas e explosão do urbano mundial às ideologias do seu desenvolvimento no Brasil

“A Idade Média… tem como ponto de partida o campo, para desenvolver-se em seguida através da oposição entre a cidade e o campo. A história moderna é a história da urbanização do campo, e não, como entre os antigos, a da ruralização da cidade”, escreve Marx nos Grundrisse (1953:p.382). E hoje a urbanização mundial alcança aparentemente os limites da superação da secular divisão territorial do trabalho entre campo e cidade. Vários países do Norte, mas também do Sul, atingem cerca de 75% (como é o caso do Brasil) até 95% (Inglaterra) de população urbana. O urbano e seu modo de vida – desde sempre ligado ao dinheiro e à troca de mercadorias, base originária da burguesia comercial e industrial, do exército e do Estado moderno – se estendem por todo território. Assim, neste início de século o urbano parece concentrar e conter o devir da história do capital.

Mas, desde o início do processo de industrialização capitalista clássico ou retardatário (como é o caso típico dos países da América Latina e do Leste europeu), aquilo que foi uma vez a cidade tradicional – um centro de vida urbana coeso, bem delimitado e com certa autonomia política e social em torno das igrejas, do palácio real, das sedes administrativas, corporações de ofício e os mercados (de “preço justo” etc.), salões de literatura, cafés etc. – começa a se estilhaçar. A cidade européia aparecia, desde a Renascença européia até o nascimento da sociedade civil-burguesa no séc.XVIII, como matriz de certas relações sociais “racionais” e “pacíficas” superiores, daquilo que, historicamente foi tido sob os mais altos conceitos: “civilização”, “cultura” e “formação” (Bildung), vale dizer, “autonomia” e “emancipação” social (vide p. ex. Adorno, Th. W. [1959]). Ideologia da modernização (mercado, sujeito-monetário burguês) ou não, ilusão da política (cidadania e igualdade formais etc.) ou não, o fato é que o urbano criou não só a melhoria relativa nas condições de vida e as bases de uma cultura cosmopolita universal, mas a possibilidade da experiência de crítica social radical e os potenciais de superação daquilo que poderíamos chamar, com Marx, de “pré-história do homem”. Pois a cidade sempre foi, enquanto forma mental e social, a reunião de riqueza social: pessoas, objetos, técnicas, conhecimentos, atividades sociais etc. – tudo se liga horizontalmente enquanto potencial criativo de vida social; atrair e aglomerar riqueza é um atributo formal de seu centro e das centralidades que ela dissemina um pouco por todo lugar (cf. Lefebvre, Henri, 1970). É essa capacidade de junção de diferenças sociais, comunicação, interligação e comunhão de forças produtivas que entra fundamentalmente em colapso quando a própria modernização capitalista mundial começa a chocar com suas barreiras instransponíveis (Kurz, Robert, 1996 e 1995).

Segundo sugere Walter Benjamin (1991), é a cidade como um todo que se torna algo como a “imagem dialética” das contradições da sociedade capitalista, ou seja, a forma de apresentação efetiva da forma-mercadoria (em seu duplo aspecto de valor de uso e valor). E como indica Henri Lefebvre, com o reino da mercadoria a cidade “implode e explode” mundialmente em fragmentos de urbanidade pelas periferias e subúrbios. Um pouco por todo o mundo surgem, para além da antiga cidade, uma morfologia sócio-espacial que expõe tais relações sociais contraditórias: bairros operários e de classe média, novos loteamentos segregados na forma de habitações minúsculas e precárias para o (sub-) proletariado (casas de aluguel, cortiços, auto-construções, favelas, barriadas, bidonvilles etc.), conjuntos habitacionais e pavilhões gigantescos e miseráveis nos confins do perímetro urbano, cidades satélites etc., bairros nobres privilegiados politicamente e restritos à classe média alta e burguesia etc. (vide p.ex. George, P., 1972). Os próprios centros antigos tornam-se deteriorados de vida social. A cidade é transtornada pela imensa especulação imobiliária segregadora e pelas transformações espaciais impostas pela moderna produção industrial, associada às políticas tecnocráticas do Estado, em termos de infraestrutura social (estradas e avenidas para o automóvel, ferrovias, aeroportos, redes elétricas, telefônicas, de saneamento etc., hospitais, escolas, prisões – como condições gerais para fábricas, moradias populares, supermercados, shoppings etc.). A própria “urbanização planejada” pelo Estado tem um caráter alienado e espetacular frente aos cidadãos. Certamente este trajeto é mundial, embora bastante desigual geograficamente.

* *

Assim, na Europa, a longa gênese do capital desemboca nas cidades como reunião coercitiva do que foi separado na história de acumulação primitiva: a “força de trabalho” e “os meios de produção”. Ou seja, a cidade torna-se a junção produtiva da “abstração trabalho” e da “abstração capital” (vide p.ex. Trenkle, N. 1998 a e b). Homens adultos, mas também crianças, mulheres e idosos – a massa de gente expropriada, subitamente “transformada em vagabundos” por “leis grotescas e terroristas” (Marx) do Estado absolutista, é vigiada e empurrada ao “trabalho forçado” nas work-houses (prisões do trabalho) e manufaturas (elas mesmas modelos disciplinares reflexivos dos conventos, manicômios e escolas); mais tarde, a democracia de mercado põe as condições para que surja uma classe operária “adequada”, que, por “educação, tradição e costume”, defronta-se com as condições estruturais da venda do trabalho nas grandes indústrias como “leis naturais evidentes” da vida urbana (Marx, 1988, I, 1: p.267). O trabalho, ou melhor, o tempo de trabalho abstratamente social, torna-se a grande forma de mediação social fetichista entre as pessoas, a mercadoria especial que cria e dá acesso à riqueza material sob a forma quantitativa do dinheiro.

Na América Latina e no caso mais específico do Brasil, tal processo de separação e acumulação originária acontece, em verdade, ao menos de forma virtual, desde os primórdios da colonização no século XVI, com a escravidão e o grande latifúndio exportador de produtos tropicais (açúcar, cacau, tabaco, café etc.) e extrativos (ouro, diamantes, esmeraldas). Tal foi o “sentido da colonização” (Prado Jr., Caio, 1999). Assim, na captura e mercantilização do próprio trabalhor – os índios na própria América, os negros já na África –, além da sujeição de homens pobres livres (camponeses, serviçais etc.), todos unidos como “material humano” da empresa colonial produtora de mercadorias, já está pressuposta a separação entre homens e suas condições de vida (terra/instrumentos de produção), ou seja, já está implícita para eles a situação de homens “livres como os pássaros”(Marx), embora somente no fim do século XIX (1888: abolição da escravatura), por pressão inglesa, isso iria se concretizar e consolidar. Ao mesmo tempo é a própria terra que, a partir do momento da crise do tráfico negreiro em 1830/50, se torna cativa: uma mercadoria somente acessível para quem detivesse grande quantia em dinheiro para a comprar (Cf. Martins, José de Souza, 1979). Assim, é do final do século XIX que data a grande expansão da urbanização capitalista no Brasil, sob a pressão da industrialização, ela mesma emaranhada com os novos negócios da especulação fundiária urbana e rural e as políticas públicas clientelistas e patrimonialistas de transportes (bondes e ferrovias), de energia, saneamento básico, habitacionais etc. (intrinsecamente sempre ligadas a privilégios privados, favores pessoais e corrupção política) (cf. Martins, 1994).

Assim, desde a abolição, o modo de vida urbano-industrial aparecia como uma grande promessa: a promessa do desenvolvimento modernizador e integração com a civilização ocidental capitalista. Da elite às massas pauperizadas, a cidade moderna aparecia como essa grande oportunidade. Para uns sobretudo a chance, a fortuna de novos negócios, para outros a loteria da sobrevivência e acesso a bens até ali inéditos em suas vidas. De modo que a libertação da massa de escravos levou-os de fato às cidades em crescimento, mas também aos confins do interior do Brasil até ali quase inteiramente despovoado (é nesse interior que surge movimentos milenaristas camponeses, de cunho anti-moderno por exemplo). A sociedade urbano-industrial se polariza com o campo, compreendido agora como o “atraso”. No século XX, a modernização capitalista do campo vai expulsando violentamente pequenos proprietários (o caipira, o caboclo, o gaúcho etc.), destruindo gradualmente os antigos modos de vida rurais (cf. Candido, Antonio, 1964). Assim, é essa enorme população rural, paulatinamente despossuída (negra, índia, miscigenada entre si e com o português, o holandês etc.), que irá constituir a gigantesca migração interna para as grandes cidades como São Paulo e Rio de Janeiro no século XX (principalmente após os anos 50) para servir como mera mão-de-obra. Além deles, caberia lembrar da vinda dos imigrantes europeus livres no séc. XIX para a cultura do café sob o regime do colonato em São Paulo (cf. Martins, 1979) e a pecuária e agricultura subtropical no sul, vindos como camponeses povoadores (pequenas e médias propriedades) – porém, em franca decadência a partir dos anos 1940 (concentração da propriedade), o que os foi forçando também lentamente a migrar para as cidades, para o trabalho fabril, aos serviços públicos, à economia informal etc.

Assim, principalmente após os anos 30, se daria o grande esforço de modernização industrial retardatária: através de um processo de substituição de importações (da indústria leve a de bens de capital), com forte regulação e participação do Estado (daí as ditaduras de Vargas e do golpe militar entre 64-85), com o sucessivo e exponencial endividamento interno e externo, público e privado, surgem as grandes metrópoles industriais, principalmente após 1950-60 (vide p.ex. Mello, J. Cardoso de, 1986). É assim que as capitais recebem indústrias multinacionais fordistas de bens duráveis e de capital, na esperança de se criar uma acumulação capitalista endógena nacional. Era a promessa de desenvolvimento de uma “grande nação” civilizada nos trópicos. Processo que foi, porém, idêntico ao estilhaçamento das cidades, nos termos gerais expostos acima.

Da esperança à catástrofe do urbano: particularidades da urbanização brasileira

Assim, o país que tinha passado por seu milagre econômico (!) entre 1967-72, que crescia a taxas de 10% ao ano, após 1973 começa a confrontar-se com a crise mundial de acumulação, passando por recessões e fracas recuperações econômicas sucessivas. Em marcha forçada de industrialização endividada, com enorme arrocho social dos salários sob a ditadura militar, que piora ainda mais sob os governos democráticos, abrir-se-ia doravante um fosso gigantesco no social: em 2000, no Brasil, os 10% mais ricos detêm 50% da renda nacional e os 50% mais pobres apenas 12%; ou, 1% das famílias ricas consomem mais do que 80 milhões de cidadãos de “quinta categoria”; metade das terras agrícolas pertencem a apenas 2% dos proprietários rurais e 62,4% das terras são improdutivas; enfim, uma das piores distribuições do mundo(1). O salário mínimo de 2001 – 80 dólares – corresponde a cerca de 1/5 do de 1940 e é um dos mais baixos do mundo(2). O que parecia milagre torna-se-ia com o tempo desastre social e econômico.

Com a crise mundial pós-73 e a mudança da política mundial de juros em 79, vai estourando a dívida interna e externa e, então, a hiperinflação no Brasil. Nos anos 80, a economia volta-se à exportação, com “efeitos saudáveis” na balança comercial e novas ruínas para a agricultura alimentícia camponesa do sul e sudeste (feijão e arroz substituído por cana, soja e laranja) e estagnação de certos setores da indústria. Será a lenta ascensão do capital fictício (especulação monetária e com rendas fundiárias). Mas as importações crescem bastante nos anos 90, sob as pressões do FMI e da abertura neoliberal. No fim dos anos 90, em pleno governo “social-democrata” (PSDB, F.H.Cardoso), a dívida interna/externa quintuplica, chegando a atingir hoje em torno de 400 bilhões – mais da metade do PIB do país. A lenta desvalorização da moeda e a subida dos juros tentam conter a inevitável volta da inflação e a queda no fundo do poço. Os orçamentos públicos federais de 2001 para educação e saúde não atingem 20% do que será pago em juros ao serviço das dívidas neste ano (154 bilhões de dólares!); de fato já em 2000, 64% das verbas foram gastas em pagamentos de juros. Por fim, a crise energética e de abastecimento de água (por falta de chuvas, de investimentos estatais e privatizações mal feitas) ameaça cavar ainda mais fundo a cova para o cadáver do trabalho: diminuição do crescimento, aumento do desemprego.

Assim, após 80, as políticas econômicas que se sucederam tentavam conter a hiperinflação galopante ao preço de mais concentração de renda e empobrecimento geral. A “década perdida” de 80, e ainda mais as da ditadura militar, são reconhecidas no fim dos 90 como “não tão ruins assim”, ou até como “saudosas”, pois o desastre social só aumentou dali para cá. Nos anos 90, a estabilização da moeda (plano Real) se dá ao preço do hiper-endividamento do Estado (agora engessado com o capital especulativo nacional e internacional e em perpétuo “ajuste fiscal”), de desindustrialização e/ou desconcentração espacial das empresas (em relação intrínseca com as altas taxas de juros oferecidas pelo governo ou os incentivos/guerras fiscais inter-localidades), fusões/concentrações de capital empresarial, altas taxas de desemprego estrutural,(3) e, portanto, mais concentração privada do produto social (30% do PIB mudou de mãos nos últimos quatro anos !). Os infelizes da cidade e do campo levam sua sova de costume, agora, porém, com chicote de aço. As estatísticas duvidosas do desemprego urbano paulistano (oficialmente fala-se em 8%, mas realmente pode-se pensar em até 17% da população ativa) e de sua irmã gêmea dissimuladora, a precarização/informalização do trabalho (a “economia informal” chega a atingir cerca de 30% em São Paulo), juntos, fariam como suas vítimas talvez cerca da metade da população economicamente ativa.

O crescimento da economia no fim dos anos 90 atinge cifras nanicas do ponto de vista do desenvolvimento capitalista (de 2 a 3% ao ano em média). As taxas de capacidade ociosa na indústria atingem até 25%. Mas, o sonhado crescimento geral de 5% anual seria, no entanto, ainda um pesadelo, pois ficaria também devendo a integração da massa de desempregados e precarizados do trabalho de uma “população economicamente ativa” sempre em crescimento (9,67 milhões a mais entre 1990 e 96). O “recurso” populacional dos 156 milhões de consumidores e trabalhadores, considerado até aqui como “mercado potencial” pela economia política e pelos partidos de direita e esquerda, vai se tornando um peso morto face a um desenvolvimento reificado “poupador de mão-de-obra”, além do mais desqualificada: a taxa de analfabetismo acima dos 14 anos no Brasil, em 1990, alcançava a média de 19% (17,7 milhões de pessoas), sendo que 68% é a cifra global dos 75 milhões de eleitores que não completaram o ensino fundamental, são semi-analfabetos ou inteiramente analfabetos. A escolaridade média do trabalhador é de 3,5 anos. Apenas 4% da população entra e completa o curso universitário.

Assim, adentramos numa fase em que “não há mais grandes planos para as grandes maiorias” (Kurz), nem mesmo ideologicamente: FHC, presidente eleito por duas vezes seguidas, pôde dizer, num momento de “cinismo sincero” (na língua do capital), que 30 milhões de brasileiros seriam agora parte do lixo social, massa permanentemente “excluída”, um fardo para o Estado. Como já adiantara Adorno nos anos 50, o fetiche do mercado expõe-se agora para quem quiser ver, sem ética ou ideologia humanista de legitimação. De resto, advêm as reformas sociais dilapidadoras do fundo “do poço” público social, sob o nome de “custo Brasil” (redução de impostos, quebra de monopólios etc.), “privatizações” (até de empresas públicas lucrativas) e “ajustes/cortes fiscais” (educação, saúde, energia, transportes, enxugamento da máquina burocrática etc.). Na década de 90, de fato, o patrimônio público-estatal vai sendo sugado pelos credores nacionais e internacionais e pelas privatizações. Ao mesmo tempo, bancos privados recebem ajuda de R$ 30 bilhões para não falirem e levarem o sistema financeiro à bancarrota. A crise estrutural do Estado se agrava ainda mais por trapalhadas administrativas e corrupção política: como no caso dos recentes escândalos de desvios bilionários na Sudam e Sudene (agências de desenvolvimento regionais).

Assim, as rodas totalitárias da concorrência mundial irão com o tempo esmagando as ilusões do desenvolvimento não só do Terceiro ou “Quarto” Mundos, mas também nos países considerados de “semi-periferia”, “em desenvolvimento”, os “emergentes”. A cada rodada do aumento da produtividade social global, contudo, as forças produtivas gritam por novas relações sociais não fetichistas, como que de dentro da cripta social. Agora, a crise mundial e mais particularmente de seu vizinho e parceiro espoliado de Mercosul, a Argentina, aparece como uma peste negra que a qualquer momento pode contaminar o país e destruir qualquer perspectiva de pódium para os retardatários exemplares do desenvolvimento capitalista. E é na cidade, lá no interior do vivido, na realidade implícita do cotidiano, que a crise tende a já aparecer como processo de “colapso da modernização”(R.Kurz, 1996).

* *

Hoje no Brasil, diríamos que o gigante urbano – por quatrocentos anos uma mancha irrisória (mas eficiente politicamente) frente aos grandes campos de plantations e extração mineral – até mesmo chega a se indiferenciar do “rural”, que pode até resistir em seu seio como elemento dum terceiro termo totalmente desfigurado e quase indecifrável (aqui falaremos sobretudo das grandes metrópoles, mas também das cidades médias que já vão entrando neste processo). O urbano é profundamente marcado pelo seu negativo.

Quando a grande cidade industrial em crise engole o rural, isso sucede sem diluí-lo e superá-lo por completo: não só porque práticas rurais persistem entre os pobres no corpo da cidade periférica como recurso de sobrevivência emergencial (cultivo de hortaliças, pequena criação de animais, relações sociais mais diretas), mas principalmente se entendermos como características elementares do “rural” as imposições cegas e objetivas do “natural-social”, a relativa dispersão espacial, a pobreza e a raridade de determinados objetos, tal como Guy Debord (1997: §177), com base em A Ideologia Alemã (“O campo mostra justamente o oposto, o isolamento e a separação”), o entendia: assim, “o urbanismo que destrói as cidades reconstitui um pseudocampo, no qual estão perdidas as relações naturais do antigo campo quanto as relações sociais diretas, e diretamente questionadas, da cidade histórica”. Agora porém tais imposições aparecem enquanto poderes estranhos plenamente “sociais-naturais”, ligados à forma social não-social da produção capitalista de mercadorias, forjadora de um novo isolamento social dos sujeitos mônadas-dinheiro e de uma nova aspereza da vida sob a loucura das normas burocráticas cegas do dinheiro e de uma concorrência mundial brutal. Assim, para Debord, “a ignorância natural cedeu lugar ao espetáculo organizado do erro” e “já que a história que é preciso liberar nas cidades ainda não foi liberada, as forças da ausência histórica começam a compor sua própria paisagem exclusiva”.

No colapso avançado da modernização latino-americana e mais especificamente brasileira, esta “paisagem de ausências” tem uma peculiaridade. Este terceiro termo devorador da cidade tem talvez a mesma cara feia da velha produção capitalista dos primórdios da revolução industrial (tal como analisada por Engels p.ex.), porém, agora tendencialmente muito mais feia pois envelhecida pela crise avançada da sociedade do trabalho sistemicamente perdedora. De modo que a película de terror vai se revelando nitidamente quando a maquiagem urbana que algumas políticas do Estado ainda proporcionavam (entre os anos 40-60) vai se desmanchando enquanto “conquistas sociais cidadãs” do modo de vida urbano (escolas, saúde e saneamento básicos, previdência e segurança social, oportunidades de trabalho permanente, direitos trabalhistas, sindicalização e sufrágio etc.; no entanto, cabe salientar que nunca houve por aqui algo próximo à política de “bem-estar social” dos países “desenvolvidos”).

Esse processo é mundial mas também se apresenta de forma desigual, de acordo com o continente, o país, a região, a cidade e suas zonas… Em todo caso, a ubiqüidade da miséria social, em todos os sentidos (material, social, cultural etc.), começa a eclodir em todos os lugares do mundo, tão pronto os diferentes países e suas regiões caem sob a espada afiada da produtividade global, sendo desconectadas dos grandes fluxos de investimentos monetários e produtivos privados e das políticas do Estado (agora medularmente endividado), sendo rebaixadas à reprodução precarizada do trabalho e da renda. Neste sentido, vão agora se “de-formando” como “regiões pós-catastróficas”, tal qual se referiu Kurz em seu Colapso da Modernização (1996: 165 ss.).

Ao mesmo tempo, as grandes metrópoles que ainda recebem e fazem circular grandes fluxos de capital se “resumem” a pequenas ilhas para os vencedores do mercado: uma classe média ligada ao setor mais avançado dos serviços e do comércio, à especulação financeira e à criação de tecnologia, à indústria da cultura e do lazer (cf.Arantes, 1999), vivendo em bairros elitizados (pelos preços imobiliários) e protegidos (por milícias privadas e por políticas de zoneamento urbano), tudo em meio ao alto-mar de pobreza, desventura, violência e desespero sociais. As políticas públicas tornam-se seletivas, aplicadas a eixos territoriais especiais (em São Paulo, p.ex., ligados aos setores mais avançados da produção terciária), largando a imensa periferia a si mesma, ou melhor, às empresas privadas de lotementos da terra urbana (muitas vezes clandestinas), à política emergencial, penal e segregacionista do Estado e à iniciativa infinita de pequenos produtores e vendedores de mercadorias (sobre esses assuntos vide, p.ex., a coletânea elaborada em torno do Labur: Damiani, Amélia, 1999).

Em verdade, a especulação com a terra urbana em São Paulo e outras capitais, desde o fim do século XIX, ganhou a dimensão de um circuito secundário da valorização do dinheiro: açambarcar terras públicas e vendê-las, invadir e lotear terrenos devolutos, ou os comprar barato e vendê-los caro, às vezes construindo, alugando ou vendendo casas prontas, após chegar certa infraestrutura urbana – ou seja, extrair renda fundiária de quem se dispuser a pagar o preço da especulação – foi a forma primordial de expansão da periferia (e da densificação vertical nos centros) das grandes cidades brasileiras, envolvendo várias empresas do mercado imobiliário e da construção civil, Um mercado gigantesco sempre em expansão, principalmente após os anos 60. Mercado que é paralelo, como já sugerido, ao circuito da valorização fictícia do dinheiro em aplicações bancárias, bolsas de valores, títulos públicos etc.

Mas se no mundo do dinheiro sem lastro tudo parece de vento em popa, a catástrofe do desenvolvimento e a fratura exposta da urbanização brasileira se expõem plenamente nos elevadíssimos números de favelamento em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro após 1970:

Crescimento da população favelada nas duas maiores cidades brasileiras

Grande São Paulo, população favelada:

  • 1971:39.000
  • 1974/5:108.000
  • 1983:414.572
  • 1993:1.901.892

Rio de Janeiro, população favelada:

  • 1960:335.696
  • 1970: 1.000.000
  • 1982: 1.800.000
  • 1993: 2.000.000

Fontes: Retrato do Brasil, encarte nº37, Folha de São Paulo 4/98 e 5/96 e PMSP, 1993.

A favela é a última alternativa que sobra para cerca de 30% da população carioca e 6,2% da população paulistana. Obviamente isto tem relação com a queda histórica dos salários e rendimentos e com políticas estatais que sempre privilegiaram o crédito bancário para a construção de moradias para a classe média. Se somarmos habitações precárias em cortiços (3,5 milhões de habitantes em São Paulo) e os loteamentos clandestinos (em construção), teremos cerca de metade (ou mais da metade) da população dessas cidades morando em condições gerais insalubres e insuficientes. Além disso, cerca de 70% das moradias estão em condições ilegais. Capitais como Recife tem índices piores ainda de favelamento (43% do total de domicílios). No limite extremo, até morar nas favelas começa a se tornar inviável, motivo do aumento da população de rua: mendigos morando em baixo de pontes, portas de lojas etc. A carência habitacional brasileira chega em torno dos 6 milhões de moradias (Maricato, E., 1998), mais da metade da população de Portugal, Bélgica ou Uruguai.

Conseguir morar em uma casa modesta e adequada na periferia de São Paulo torna-se quase um luxo, e é fruto do sacrifício de uma vida inteira: migrantes demoram até 20 a 30 anos para poder se instalar na cidade “em definitivo”. Assim, são constantes as migrações inter-urbanas por São Paulo, na fuga dos altos aluguéis imobiliários, mas também à procura de trabalho ou na forma das migrações pendulares (casa-trabalho). Em São Paulo, uma vez lançadas à periferia distante (20/30 km dos centros), as pessoas mais pobres precisam se aglutinar para lutar por melhorias. Geralmente, a mobilização popular precisa lutar muitos anos para arrancar dos órgãos públicos condições mínimas de habitação, geralmente em lugares desérticos, perigosos ou sem qualquer infraestrutura (beira de rios, córregos e várzeas alagadiças, encostas de morro, áreas de mananciais etc.), demandando novas lutas (por escola, postos de saúde, linhas de ônibus etc.) (Maricato, 1996). Por um bom tempo precisam roubar energia e água encanada, através de ligações clandestinas, para poder sobreviver com os rendimentos de fome. Na maioria das vezes são os próprios moradores que constróem suas casas no sistema de “mutirões” coletivos ou de “auto-construção”, duplicando então as horas de trabalho familiar nos finais de semana, rebaixando mais uma vez o custo da reprodução da força de trabalho (Kowarick, 1993). Eis o aspecto avermelhado (de parto e nascimento) e cinzento (de ruína) das periferias urbanas latino-americanas: são milhões de casas e ruas (e a vida social que as acompanha) sem terminar, em projeção ou perecimento, quase-virtuais. Daí a ironia dos nomes dos loteamentos, ou melhor, “Jardins e Vilas” da metrópole: Paraisópolis, Vila Nova Conquista, Jardim Papai Noel, Vila Esperança…

Dificilmente a pobreza urbana, no entanto, é concebida popularmente como privação e dominação social, mas é individualizada e vivida como fracasso familiar e humilhação pessoal, no máximo percebida como culpa subjetiva de certos governantes, “dos de cima”, daí a passividade e falta de organização gerais das massas pobres urbanas. Uma luz popular mais cortante surge no rap (rhythmum and poetry), na consciência ressentida, revoltada, “envenenada” dos jovens negros e pobres da periferia (Mello, 2000). A situação melhora também nos movimentos organizados pró-moradia e associações de bairro, embora eles tenham enfraquecido muito a partir dos anos 90 por causa do desemprego, da nova orientação conservadora do Vaticano, da penetração da Igreja Universal do Reino de Deus e de várias Igrejas evangélicas e pentecostais nas comunidades e de governos de direita – uma água fria na questão social brasileira(4). Além disso, são muitos os movimentos que, nascendo como insurgência coletiva contra a propriedade privada do solo urbano, se desmancham em seguida no cotidiano mercantil mais individual e banal, embora possa surgir na população periferizada uma vida de bairro solidária mais intensa que noutras partes da cidade, por exemplo, os bairros de classe média. Nestes últimos, a infraestrutura normalizada vem acompanhada do vazio de história das praças e ruas, povoadas pelo trânsito infernal de automóveis – por si só já índice visível do colapso da modernização no urbano (Schor, 1999) – ou o movimento espetacular das mercadorias e dos consumidores nos supermercados e shopping centers (Duarte, 2000).

Assim, uma metrópole como São Paulo tem um rosto de Jano multiplicado por mil. De um lado, por exemplo, pode haver avenidas com infovias para prédios de luxo superequipados e do outro terrenos vazios à espera da valorização, barracos miseráveis em áreas inundáveis ou de risco (áreas de erosão e deslizamentos, área de mananciais de água etc.), sem qualquer condição de moradia(5). Na verdade, aliás, a questão ambiental parece menos visível na cidade: mas o problema das enchentes urbanas continua a atingir milhares de pessoas em São Paulo todos os anos, e os problemas do racionamento ou falta de água (por poluição), já atingem ou atingirão em breve milhões.

* *

Desta maneira, a crise da sociedade do trabalho é idêntica à crise superavançada da cidade e do urbano, enquanto totalidade. A crise se normaliza: trata-se de um “estado crítico” (Lefebvre). No limite, a tradicional e cotidiana paz urbana da mercadoria é destruída pela guerra pura. O urbano é solapado pelos conflitos civis e militares abertos, os assaltos, o tráfico de drogas e os tiroteios entre quadrilhas e polícia, as correntes invasões e despejos de ocupantes e invasores, moradores de bairros em terras ilegais ou inadimplentes,(6) depredações de espaços públicos (trens, escolas, estádios etc.), rebeliões nos presídios superlotados (nos últimos 15 anos crescem bastante), o medo constante e a mania de segurança. O Estado pode ser caracterizado, de fato, como emergencial, segregacionista e penal. A própria sociedade, cativada pela mídia, exige que os investimentos em policiamento e assistência social aumentem. Do outro lado, no fio da navalha, está a multidão de assistidos-sem-assistência perambulando pelos cruzamentos e semáforos, o deserto populoso dos pequenos vendedores de mercadoria e caçadores de dinheiro…

Fetiche do trabalho: a reprodução crítica de uma sociedade da mercadoria em colapso avançado

A economia pós-colapso exige de cada um mais trabalho do que nunca. A multiplicação das horas de trabalho acompanhou a redução histórica de salários.

Médias de horas de trabalho para obtenção da ração essencial (Dieese, set./96):

São Paulo:

  • 1969: 110 h 25 min
  • 1979: 152 h 04 min
  • 1987: 208 h 05 min
  • 1996: 191 h 03 min

Principais Capitais (set./96: tempo que o trab. de salár.mín. precisa p/ ração ess.:)

  • Rio de Janeiro: 169 h 51 min
  • Belo Horizonte: 171 h 57 min
  • Curitiba: 179 h 51 min
  • Florianópolis: 179 h 09 min
  • Porto Alegre: 173 h 30 min
  • Salvador: 148 h 26 min
  • Recife: 158 h 26 min
  • Brasília: 171 h 18 min
  • Goiânia: 151 h 46 min
  • Belém: 163 h 58 min

Por outro lado, todos na família estão obrigados a ganhar as suas migalhas para complementar o salário de um chefe de família: meninos, meninas, mães e até mesmo avôs e avós são sistematicamente empurrados ao mercado de trabalho. Só assim, em São Paulo, a maioria consegue alcançar a renda mensal familiar entre 3 e 10 salários mínimos, abaixo ainda do salário mínimo de 1959. Em algumas outras capitais brasileiras, esta média familiar é muito pior (Fortaleza, Salvador, Recife etc.). São milhares de pessoas tendo que não apenas sobreviver do ferro-velho e do lixo monstruoso que a cidade produz, tendo de morar debaixo de viadutos, praças ou becos, entre ruínas, refugos e ratos, mas também comer restos dos lixões ou das sobras dos fins de feira popular. Quanto à família em si, ela se estilhaça, pois todos precisam se colocar enquanto “sujeitos monetarizados”, que, se já era motivo da cisão entre o papel hierárquico de homem e mulher no lar, agora rebaixa e põe os filhos sem os cuidados de socialização dos pais, ausentes em casa, todos presentes no trabalho ou em seus cômodos isolados em horários diferentes.

Desta maneira, a sub-remuneração da força de trabalho, típica dos primórdios do capitalismo europeu, é a forma quase permanente e geral no caso do capitalismo periférico brasileiro. Como é difícil atingir imediatamente os padrões organizativos de empresas globais, sua produtividade e seus preços competitivos, pode-se aventar a hipótese de que a forma de extração de mais-valia absoluta torna-se um modelo de concorrência possível no mercado. O capital social total, assim, pode pagar o equivalente de um salário e receber a massa de trabalho de 2 ou mais pessoas de uma família, desde menores obrigadas a trabalhar. Exemplos clássicos dessa sub-remuneração do trabalho desprotegido e desqualificado em São Paulo encontra-se nos empregos da construção civil e dos shopping centers, responsáveis por grande parte dos serviços temporários, importantíssimos para a reprodução e movimento do mercado urbano. Juntamente com o setor público (em São Paulo há um dos maiores contingentes de funcionários públicos do mundo), as pequenas empresas comerciais ou de serviços (padarias, lojas de calçado, escritórios etc.etc.) e os serviços para empregadas domésticas – tais setores são responsáveis por grande parte dos postos de trabalho da classe média baixa e pobre de São Paulo. Porém cada vez mais postos na corda bamba.

Por um lado, a indústria e os serviços vêm passando pelos processos de enxugamento de quadros através da chamada organização pós-fordista do trabalho, principalmente sob a forma da descentralização da produção via terceirização ou cooperativização forçada. As privatizações forçadas aumentam o número do desemprego(7). Isto envolve os serviços de limpeza, segurança, contabilidade, manutenção técnica, montagem, ajustamento de peças e outros. Assim, no plano vertical então temos uma colonização feita por grandes empresas de uma massa de trabalho delegado a empresas menores subsidiárias, sub-remuneradas e auto-exploradoras: forma de se livrar de impostos, contribuições previdenciárias, férias, 13º salário, sindicalização (que se reduz globalmente na década de 90), greves etc. Essa tendência é mundial. (ver Antunes 1995 e 1999). Um número expressivo de micro e pequenas empresas, assim, incorpora ainda certa quantidade de empregados que foram “racionalizados” pelas grandes empresas. De outro lado, as falências e concordatas chegam ao ponto de criar para os trabalhadores a saída ilusória da “auto-gestão capitalista”, isto é, a administração empresarial “proletária” com uma super-racionalidade mercantil: tentando concorrer no mercado, se sujeitam a ela de modo mais selvagem, muitas vezes tendo de superexplorar a si mesmos (via redução de salários e aumento de horas e ritmos de trabalho), assumindo e renegociando as dívidas da empresa falida, até arrematando em leilões as próprias máquinas da empresa penhoradas pelo banco, através de novos e maiores empréstimos. O fetiche do trabalho produtor de mercadorias, autonomizado nas consciências, “possui” também as formas de práxis contrapostas ao mercado possíveis.

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Cidades como São Paulo até os anos 90, mesmo diminuindo seu crescimento relativo, ainda recebiam cerca de 250/300 mil novos migrantes e/ou moradores anualmente. E como o ritmo expansivo do capital não tem conseguido mais integrar mão-de-obra (são 2,7 milhões de desempregados em média na metrópole para uma população de 17 milhões), tais pessoas estarão todas obrigadas a ir à caça ao dinheiro por conta própria, em plena “selva de pedra”. De fato, é preciso “tirar leite de pedra”, como diz o ditado popular, para conseguir alimentar os filhos. Ruim em São Paulo, pior fora dela. Por isso, se mantém os fluxos para as grandes cidades nestes últimos 20 anos. Quantidade não desprezível de pessoas já tenta, também, por isso, a imigração para outros países (Japão, EUA, Europa).

Dentre as formas principais dessa verdadeira caça ao dinheiro acha-se principalmente o trabalho informal, sem direitos e com remuneração mais ou menos baixa e instável:(8) os pequenos negócios caseiros (costura e artesanato “para fora”, comida congelada, cabeleireiros, pequenos bares, docerias, papelarias, pizzarias etc.), a venda de serviços (engraxates, pedreiros etc.) e mercadorias nas ruas, semáforos ou nos transportes (trens, metrôs), o serviço de moto-boy (os “cachorros-loucos” que com suas motos particulares ficam sujeitos a acidentes e roubos constantes no trânsito paulistano), serviços de segurança privada diária, o serviço de transporte coletivo como as “lotações” (uso de uma perua Kombi ou Van como uma espécie de ônibus clandestino, ou legal, com a ajuda de um adolescente na cobrança, embarque e desembarque: são 15 mil veículos assim em São Paulo, contra 10 mil ônibus oficiais), o serviço tradicional de empregada doméstica de famílias de classe média (que emprega boa porcentagem das mulheres de baixa renda da periferia), o serviço de coleta de papelão e detritos sólidos recicláveis do lixo (em São Paulo, há um exército de 20 mil “celebrados” mendigos “ecológicos”, ganhando até 130 dólares/mês, trabalhando muito e vivendo entre o próprio lixo). A rigor, o comércio e os serviços informais sempre existiram nas cidades desde o fim do século XIX. Porém, hoje é visível que a mobilização do trabalho (no amplo sentido) neste setor é cada vez maior: alguns dizem que em torno de 30% da população sobrevivem destes expedientes.

Este processo atinge todas as idades. É que as pessoas correm o risco de nunca mais se aposentarem, quando se fica velho com 36 anos de idade e não se consegue mais um emprego… Por outro lado, a reforma da previdência social, p.ex., um fundo arrombado durante estes últimos 30 anos, aumenta o valor e o tempo mínimo das contribuições (65 anos) e estabelece tetos máximos de salários a receber (uma massa que ganhará até 7 salários mínimos/mês). Como fica cada vez mais difícil a contribuição previdenciária num emprego formal e, levando em conta a perspectiva de vida média do brasileiro (65 anos), muitas pessoas irão morrer trabalhando… aqui, entretanto, não se trata ainda do extremo da escravidão. Pois esta ressurge como tal no Brasil de modo literal: entre 1970 e 1990, cerca de 64 mil “escravos por dívida” (a chamada “peonagem”) trabalharam na abertura de fazendas na Amazônia e em outras partes do Brasil (inclusive o estado de São Paulo).

No outro extremo da caça ao dinheiro temos a contravenção e a criminalidade organizada ou esporádica. O “jogo do bicho” (espécie de loteria grupal), o tráfico de drogas, os seqüestros, os assaltos a banco e roubos de automóveis e cargas de caminhões – todos envolvem muitas pessoas em organizações mafiosas tais como o PCC (Primeiro Comando da Capital, São Paulo) ou o CV (Comando Vermelho, Rio de Janeiro)(9). Entre os não-organizados estão os desesperados de ocasião (em São Paulo, chegamos ao ponto de vizinho roubando o vizinho ao lado), os viciados, os “arrastões”, os “trombadinhas” etc. Em São Paulo o índice de mortalidade por crimes violentos é maior entre os jovens de 15 a 25 anos; a guerra urbana de quadrilhas quase ultrapassa o número de mortos da guerra na Iugoslávia no mesmo período.

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O conceito de exército industrial de reserva (Marx) parece se modificar e ganhar aplicação mais universal do que nunca. Não se trata mais de um exército industrial e nem de reserva propriamente dito. Claro, sua função de rebaixar salários continua a mesma. Porém, a expectativa de reencontrar emprego formal na indústria é cada vez menor. Por outro lado, não se trata de mera exclusão, pois não há ninguém mais na reserva, pois todos já estão mais ou menos no meio do campo – sim, um verdadeiro campo de batalha – com suas táticas guerrilheiras de sobrevivência, tentando “se incluir” no mundo das mercadorias. Além disso, uma parte da classe média, tendendo a “simular competência” através de cursos de formação universitária duvidosos, é também massa desqualificada, semi-inútil do ponto de vista do trabalho produtivo social global, vivendo no fio da navalha de suas auto-imagens de academia de ginástica, dietas perpétuas e operações plásticas. E finalmente, talvez não se trate também de um “exército”, a não ser no sentido negativo e opositivo da palavra: tal como o crime organizado já mencionado, que arregimenta tal massa de desempregados perpétuos, mas também movimentos de oposição à propriedade da terra e ao mercado urbano e rural de terras, tal como o “Movimento Sem-Terra”(MST) e dos “Sem-Teto Urbano”. No MST há 4,8 milhões de pessoas envolvidas nos acampamentos e assentamentos, lutando contra a superconcentração de terras no Brasil (vide a revista Caros Amigos, nº 6, out./2000). De modo que, pode-se perceber aqui o exato oposto da tendência secular à urbanização brasileira: no Brasil o campesinato não só não desapareceu, como foi recriado pelo grande capital (agro-industrial e frigorífico como força de trabalho não-estritamente capitalista) ou resiste como campesinato insurgente contra o latifúndio e as péssimas condições de vida do urbano degradado. Os resultados são ainda, no entanto, contraditórios, pois caminham na linha tênue entre um certo reformismo, a pequena produção de mercadorias (e sua ética repressiva do trabalho) e a insurgência do não-idêntico (a produção coletiva, a atenção às necessidades sociais, o cuidado ecológico, ao qualitativo etc.).

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Existe vida após o colapso do urbano ? As possibilidades devem existir no exato momento em que a lógica da reprodução capitalista começa a se esgotar. Mas a cidade reúne as pessoas e as forças produtivas ainda enquanto separados: neste sentido vivemos de fato aquele “comunismo das coisas” de que fala Kurz (1996). Contudo, terrenos, galpões, instalações fabris, técnicas, saberes, etc. que ficam paralisados ou rebaixados a ferro-velho econômico porque estão abaixo do nível global de produtividade e rentabilidade poderiam ser destinados ao uso coletivo contra a lógica da concorrência mercantil. Se a teoria crítica pôde surgir historicamente nas cidades, também poderá surgir daí um movimento de superação que lute contra o trabalho produtor de mercadorias. Não como locus exclusivo, mas como um sítio de experiências – e sabe-se que a cidade sempre foi experimentação social por excelência – ligado a outros lugares no campo e nas cidades, que permitam interconectar horizontalmente produção e consumo de forma direta e discutida entre todo os habitantes, contra a racionalidade empresarial de mercado, visando ao atendimento de necessidades sociais. Este movimento que germina na pólis, entretanto, não deveria querer “fazer política” no sentido tradicional do termo, e ocupar, no limite, cargos no Estado para administrar a miséria social: poderia sim dirigir reinvidicações ao Estado, mas visando a uma outra racionalidade da produção, consumo e organização social. Tal movimento social, por um lado, está longe de ser fácil, por outro, é o mais urgente: abolir o imenso sofrimento desnecessário provocado pela reprodução forçada de uma sociedade do trabalho que se tornou totalmente obsoleta (vide Grupo Krisis, 1999).

(*) Geógrafo e historiador, paticipantes do grupo de Estudos Krisis do Laboratório de Geografia Urbana (Labur) do Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo. Este texto foi feito tendo em vista a apresentação geral de alguns estudos de pós-graduação e discussões informais no Labur, para a reunião “Krisis em Lisboa” de 2 a 9 de junho de 2001. Agradecemos aqui os comentários do pessoal do grupo de Estudos Krisis.

Notas:

(1) Até mesmo países da África (Argélia etc.) e América Latina (Chile etc.) têm melhor distribuição de renda.

(2) Médias anuais do salário mínimo no Brasil (em R$ de 1995): 1940 (551), 1980 (348), 1984 (293), 1988 (215), 1990 (164), 1992 (147), 1994 (128), 1995 (113). O salário mínimo brasileiro (1995: US$ 98) comparado a outros países ficava abaixo do México (127), Paraguai (145), Uruguai (160), Argentina (200), Espanha (590), Estados Unidos (680), Itália (800), França (1000) ou Dinamarca (1325). No Brasil como um todo, 53% da população ganha menos de 2 salários mínimos). O custo de vida do cidadão metropolitano é alto. O orçamento familiar é torrado basicamente em custos de habitação (água, luz, aluguel etc.) (31%), alimentação (25%), transporte (14%) e saúde e cuidados pessoais (12%).

(3) As taxas do desemprego aberto, são dúbias, “encobertas”: 8% a 15% da população ativa. À título de exemplo: em 12 meses entre 95/6 a indústria fechou 252.697 postos de trabalho (Folha de SP, 10/set./96).

(4) Contudo, um governo de esquerda não seria ou é necessariamente melhor. As várias famílias mobilizadas pela prefeitura do Partido dos Trabalhadores em um município da Grande São Paulo em 2001 dão um exemplo: de início forçadas a dar suas “palavras de ordem” estereotipadas, o povo assistido está lá para contemplar o espetáculo. Ninguém ouve o que eles têm a dizer… após horas de discursos políticos enjoados, eles vão embora com promessas e as frases clichês do prefeito, que se resume a dizer que “vai dar um jeito na moradia”. Quanto à religião: em 1986, o sólido catolicismo (99%) já vinha sendo abalado por outraas seitas, que já eram 11% da população.

(5) A média geral do Brasil em rede de esgotos urbanos (IBGE, 1996) alcança apenas 40%. As médias regionais mais baixas são Norte (9%), Sul (14%) e Nordeste (15%; Salvador 45%) e Centro-Oeste (28%); o Sudeste tem 69%. Quanto à água encanada e coleta de lixo urbanos, as médias regionais são respectivamente: Norte (69 e 65%), Nordeste (63 e 50%), Centro-Oeste (70 e 75%), Sul (79 e 79%) e Sudeste (88 e 85%).

(6) Para se ter uma idéia: em Guaianases, bairro de São Paulo, 4.200 famílias estão ameaçadas de despejo (maio/2001) por uma reintegração de posse e propriedade em trâmite no Judiciário. Tais terras se valorizaram demais por causa das linhas de trem e metrô que por ali vão chegando. Do mesmo modo, no Itaim Paulista, 420 famílias ocupando a várzea do Rio Tietê em favelas e cortiços começam a receber a notificação de sua possível retirada.

(7) Um simples exemplo: no setor siderúrgico os cortes chegaram a 30 mil empregos; na Acesita, cerca de 70 % do pessoal!

(8) Entre 1990 e 1996 sumiram cerca de 2,06 milhões de vagas de trabalho formal no Brasil. Pode-se afirmar que o mercado informal recebeu um total de 11,7 milhões de pessoas ao longo dos anos 90 (Folha de SP, 15/set/96).

(9) Tais organizações têm, no entanto, ligações interinas com a polícia, o exército, pessoas com altos cargos nas burocracias públicas e até mesmo no Congresso Nacional.

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