31.12.2003 

Prefácio à edição portuguesa do “Manifesto contra o Trabalho”

Janeiro de 2003

Norbert Trenkle

Quando, em Junho de 1999, foi publicado na Alemanha o Manifesto contra o Trabalho, a chamada «new economy» estava precisamente no auge da sua embriaguez, financiada pela bolsa. A colossal valorização das acções tinha obnubilado os cérebros e incentivado uma irrealista e histérica atmosfera de sucesso, fazendo crer que qualquer um podia ficar rico da noite para o dia, desde que se empenhasse nisso com suficiente esperteza. Os universitários encarregados de propagandear o mercado iam ao ponto de pôr a correr o boato de que o capitalismo se tinha libertado das suas próprias leis e podia doravante funcionar sem crises.

Já nessa altura não era certamente preciso ter nenhum tipo de conhecimento especializado para reconhecer que estas ilusões assentavam num gigantesco efeito de recalcamento. Enquanto os convivas erguiam as suas taças de champanhe na festa em que se reuniam todos aqueles que continuavam a ser os ganhadores do mercado mundial, havia sectores cada vez maiores da população mundial que se viam arrastados para a miséria absoluta, pelo simples facto de, enquanto força de trabalho, terem passado a ser desnecessários para a valorização do capital. A maior parte dos países do antigo «socialismo real» haviam sido quase completamente desindustrializados e devastados, após dez anos de suposta adaptação e de efectiva desregulamentação neo-liberal. A fome e as guerras de bandos organizados assolavam grandes regiões do Leste, não diferentemente do que se passava no Sul globalizado. E até os «tigres» do Sudeste asiático tinham já dado um trambolhão do trono das ilusões do mercado mundial.

Mas também na União Europeia, nos Estados Unidos e no Japão, há muito que se ia tornando visível o processo de crise generalizada da sociedade baseada no trabalho e na produção de mercadorias. Desde os anos oitenta que vinham aumentando consideravelmente os fenómenos de exclusão social, e o desemprego maciço só em aparência ia sendo contido à custa de «programas de ocupação», financiados pelo crédito, de manipulações estatísticas em larga escala ou da imposição de salários de miséria e de transferências coercivas para o chamado «sector informal». Paralelamente, no plano da consciência e da elaboração ideológica, ia-se instalando um fanatismo cada vez mais agressivo em torno da ideia de trabalho, que fazia dos desempregados e outros indivíduos socialmente excluídos os culpados pelo destino que lhes coubera.

Entretanto, a imagem fantasmática de um capitalismo livre de crises está hoje empiricamente desmentida, mesmo aos olhos dos grandes artífices do recalcamento. Bastou a implosão de uma parte relativamente pequena da bolha especulativa (o grande «crash» nas bolsas mundiais está próximo, mas ainda não ocorreu) para conduzir a economia mundial a uma recessão cujas consequências sociais são cada vez mais claramente sentidas, mesmo nos centros capitalistas. Ao mesmo tempo que uma parte dos que se contavam entre os ganhadores da «new economy» deixou de dispor dos bons salários que recebia para se encontrar agora no desemprego, os sistemas de protecção social vão sendo progressivamente desmantelados e o mercado de trabalho é cada vez mais vigorosamente desregulamentado. Como é natural, os efeitos concretos variam de país para país, consoante a respectiva posição na hierarquia do mercado mundial, mas também de acordo com o percurso de cada um em termos de história das mentalidades. Assim, não haverá dúvida de que tanto a identificação esclavagista com o trabalho como a agressão contra todos aqueles que não querem ou não podem trabalhar são fenómenos mais pronunciadamente presentes na Alemanha do que em países como Portugal, a Itália ou o Brasil. Mas, por outro lado, a reacção à crise do trabalho é, nas suas linhas gerais, a mesma em todo o mundo. Com o colapso do trabalho entra também em colapso o fundamento da sociedade capitalista, dando origem a um fundamentalismo do trabalho, de cunho marcadamente religioso, que pretende salvar o que já não pode ser salvo, nem que seja pela força.

Contra toda esta situação não se constituiu ainda, até hoje, um protesto de massas eficaz. É verdade que com o movimento de crítica à globalização se articula, pela primeira vez desde há muito tempo, uma renovada resistência social que desperta algumas esperanças, sobretudo devido ao seu carácter transnacional. Mas de facto essa resistência continua no essencial prisioneira das categorias da sociedade do trabalho e da mercadoria, como provam algumas das suas reivindicações, por exemplo, o regresso à regulação estatal das relações de mercado ou o controlo sobre os mercados financeiros. Estas reivindicações, e outras da mesma natureza, não só não produzem efeitos práticos, porque já não têm qualquer fundamento económico, como sobretudo se revelam, nos seus princípios, ideologicamente compatíveis com uma administração autoritária da crise, eventualmente com recurso a medidas de trabalho forçado – mesmo que não seja essa a vontade da maior parte dos activistas do movimento.

Não há maneira de contornar a questão: hoje, no momento em que o sistema assente na produção de mercadorias atinge o seu limite histórico e entra na fase de autodestruição, não pode haver emancipação social sem uma crítica radical do trabalho. Por isso mesmo, mais gratificante se torna o forte eco que este Manifesto tem encontrado nos últimos anos. Não apenas na Alemanha, mas também em outros países, tem sido activamente discutido em círculos oposicionistas. Entretanto foi traduzido em sete línguas (veja-se: www.krisis.org) e foi publicado no Brasil, em França, em Espanha, na Itália e no México. Esperamos que também em Portugal ele possa contribuir para uma necessária renovação radical da crítica da sociedade.

(EDITORA ANTIGONA, tradução do alemão de José Paulo Vaz, revista por José M. Justo)