31.12.1999 

O ponto aporético e sem retorno

As razões de um “Manifesto Contra o Trabalho”.

“Não basta que as condições de trabalho apareçam num pólo como capital e no outro pólo, pessoas que nada têm para vender a não ser sua força de trabalho. Não basta também forçarem-nas a se venderem voluntariamente. Na evolução da produção capitalista, desenvolve-se uma classe trabalhadora que, por educação, tradição, costume, reconhece as exigências daquele modo de produção como leis naturais evidentes” — Marx, O capital

Cláudio Roberto Duarte – Mestrando Geog.Humana-USP, Prof. Ens. Fundam. do Município de São Paulo.

“O trabalho é a mediação fundamental na relação homem e natureza, pois só através dele o homem sobrevive”. Quantas vezes usamos este teorema, esta identidade antropológica, para fundar positivamente nossas análises ? Mas que é isso de “Manifesto Contra o Trabalho” desses alemães do Grupo Krisis ?

Antes de tudo é preciso reconhecer a historicidade específica de tal mediação, o que quer dizer limitá-la no espaço-tempo, não admiti-la como fundamento “natural e verdadeiro” da sociedade. Agora bem, o trabalho é ainda hoje, e mais do que nunca, a mediação radical: no processo de imposição da modernização o trabalho define a vida dos homens – “Quem não trabalha não deve comer ! ” – dizia certeiramente o lema surgido na fase chamada “comunismo de guerra” da Revolução Russa. Porém, a moral proletária contra o burguês embutida em tal lema volta-se contra os próprios trabalhadores. Pois quando a própria modernização nega profundamente aos homens essa condição em que os colocou, trata-se de uma contradição objetiva. É a crise. Krísis (em grego) é o momento em que o júri proferia seu juízo no tribunal, avaliando uma situação emperrada – o que corresponderia à crítica que a própria modernização capitalista faz a si mesma. Nos termos da lógica social imperante, suprime tempo de trabalho necessário enquanto se baseia nele como fonte para criar valor, duma só vez institui e extingue a necessidade do tempo de trabalho vivo. Hoje, o momento negativo passa a prevalecer, e os custos improdutivos do capital social conjunto ultrapassam os ganhos do trabalho produtivo. De modo que o valor, como forma histórica de expressão de riqueza, torna-se obsoleto. “E ninguém pode afirmar seriamente que este processo pode ser freado ou invertido”. Mas, tal razão objetiva não está ao alcance dos homens. De modo que vive-se essa negatividade como irracionalidade. É o que vemos em nosso cotidiano sob a forma estrutural de desemprego, (sub)proletarização, miséria, violência, desespero, por um lado, e mobilização total, angústia, simulação de trabalho e competência, por outro. Centralização de capital, privatizações, mais-valia absoluta e principalmente o capital fictício são modos de “ultrapassar” a base existente em crise. Tal negativo é hoje a destruição nua e crua em ato, o curso do asselvajamento das relações sociais face à riqueza historicamente acumulada, representada nas possibilidades da ciência e da técnica conquistadas na história do homem.

Por conseguinte, o Manifesto não é uma crítica de “fantasistas” ou “preguiçosos”. A negação do trabalho, isto é, sua crítica, acontece objetivamente, através da racionalidade dialética desta sociedade. Um manifesto contra o trabalho é a crítica desta crítica, crítica dos limites que a dialética puramente imanente ao capitalismo possui. Pois tal imanência é o inferno das relações sociais fetichistas: ela não é primordialmente a história de uma substância que é sujeito em formação, mas antes de um sujeito formado e em auto-movimento – o capital, “sujeito automático” (Marx) – que impõe o trabalho como “um fim em si mesmo”. Um sujeito que erige-se a partir das relações sociais reais, só que autonomizadas e transfiguradas em “curso das coisas”. Uma “razão”, enfim, que forma um “mundo” (“o trabalho forma”, dizia Hegel na Fenomenologia do Espírito), cria uma cultura (no sentido alemão de Kultur/Bildung) e uma civilização material, produz seu espaço, determinando a realidade e a consciência de classes como seus “suportes” funcionais (Marx). A modernização, assentada no trabalho social abstrato, pode ser entendida como esse processo de formação que tende a se expandir pelo mundo, legitimada pelos ideais normativos, nascidos com as revolucões burguesas, de liberdade e igualdade.

Desde Th.W.Adorno sabe-se que a crítica imanente hegeliana clássica precisaria criticar seus próprios conceitos – como identidade, totalidade, sujeito, sentido, imanência ou trabalho – se a dialética quisesse se livrar de seu telos afirmativo. O objetivo era “ir além do conceito através do conceito” (Dialética Negativa). Pois bem, estendendo a constelação formada por Hegel, Marx e os frankfurtianos, o Grupo Krisis quer ir bem além de uma crítica moral contra o trabalho (pondo ideais humanistas externos no lugar) ou puramente transcendente (o outro niilista e sem mediação), ou ainda, estética e utópica (abstrata) como alguns querem imputar-lhes. Ultrapassando a tão familiar simulação de crítica, trata-se de uma crítica interna negativa: é categorial, e de início não aceita conceitos como totalidade, valor, valor de uso ou trabalho como dados de base ontológica positiva. Estes fazem parte, sim, face à possibilidade da emancipação, de uma “ontologia do estado falso” (Adorno, Dialética Negativa). Tal crítica negativa pretende mostrar o caráter contrário à verdade desta condição histórica objetiva em que vivemos, que aparece como dominação “racional” e o melhor dos mundos possíveis.

Esta condição é cada vez mais evidente na saia justa que os diversos reformismos da esquerda neokeynesiana e social-democrata necessariamente entram, presos ao ideal político abstrato de administrar “melhor” o sistema e no discurso historicamente necessário, mas limitado, da cidadania e do distributivismo, sem poderem aguçar a crítica teórico-prática; e mais ainda no cinismo político descarado da direita neoliberal autoritária – uma distinção hoje até mesmo embaçada frente ao “totalitarismo econômico” e o fim da ilusão real de que o político fosse pretensamente autonomizado e predominante.

O ponto chave parece ser que, para o marxismo tradicional, o valor enquanto tal foi sempre um pressuposto neutro ou mesmo um dado positivo: o problema era só a mais-valia, ou seja, “o escândalo não era o trabalho, mas apenas a sua exploração pelo capital” (diz o Manifesto), e toda crítica decorrente desta visão vem no sentido magro da crítica da burguesia empírica ou dos restos pré-capitalistas na sociedade nacional, culminando na luta para uma melhor “distribuição de renda” ou, na melhor das hipóteses, por uma realização de direitos de cidadania e “igualdade”. O marxismo da luta de classes se põe, então, como “braço direito” e “cérebro” do processo de modernização, não colocando em questão as categorias básicas que a estruturam: a mercadoria, o valor, o trabalho, o dinheiro e o capital. Neste sentido, o Manifesto é a retomada do Marx radical que pensava não em uma melhor “distribuição do trabalho entre outras pessoas”, nem somente em superar a “divisão do trabalho”, mas antes de tudo, em “suprimir o trabalho” (A Ideologia Alemã), estabelecendo sua identidade com o capital; e abolir com isso também o valor e a propriedade, o Estado e a política, as classes e as demais separações “naturais” funcionais da vida. Contudo, Marx permite entender também que tratar-se-ia somente da superação do trabalho assalariado e alienado, e não do trabalho per se. Aqui, o Grupo Krisis, refazendo a genealogia do conceito em geral, quer mostrar que é só na modernidade que ele se põe, isto é, se realiza e generaliza. Pois, como falar em “trabalho (sans phrase)” (Marx), p.ex., numa comunidade primitiva ou antiga, quando plantar, cozinhar, dançar ou cultuar não eram atividades fragmentadas de um todo e eram mais ou menos dispostas segundo as necessidades internas (elas mesmas limitadas e fetichizadas, é verdade) de um grupo e seu “gênero de vida” ? Por trás do conceito de trabalho está um processo de homogeneização ou abstração real de todas as atividades concretas sob o ditado de um tempo social abstrato da concorrência, cuja finalidade já não é os homens, mas a imanência da própria atividade, do próprio meio: a produção de valor (e mais-valia), que passa por cima das necessidades e vontades de uma sociedade inteira, e a rigor, de toda a vida do planeta. O sentido, se é que podemos nomeá-lo assim, é o esforço tautológico, penoso e “desmesurado” de trabalho para acumular mais trabalho ad infinitum, ele mesmo abstraído sob a forma quantitativa do dinheiro.

Capital e trabalho, portanto, são momentos reflexivos de uma relação social total, presidida pelo valor. Simplesmente não entra no campo de visão daqueles que argumentam do interior de uma “ontologia do trabalho” que a sociedade atual é já, justamente, a realização cabal da “sociedade do trabalho” (trabalho que, portanto, não é uma “essência” transhistórica que foi desvirtuada e negada pelo capitalismo, e que portanto, deveríamos ainda realizar positivamente). Só poderemos falar então de “ontologia” no sentido negativo, isto é, da realização do que é falso: o trabalho constitui, é verdade, assim como a mercadoria, uma determinação social da existência – plenamente histórica. Por outro lado, o impulso histórico coercitivo do trabalho para criar mais-valia desenvolveu gigantescamente as forças produtivas enquanto riqueza material potencial da humanidade. Nos Grundrisse, Marx escreve: “o trabalho já não aparece incluído no processo de produção, mas o homem se apresenta como guardião e regulador desse mesmo processo”… e isso abalaria e levaria ao abismo a “lei” do valor: “com esta transformação nem o tempo de trabalho utilizado nem o trabalho imediato efetuado pelo homem aparecem já como o principal fundamento da produção de riqueza”. O processo de produção social deixa, portanto, de ser um processo de trabalho ! É por isso que Marx pressupunha, ainda nos Grundrisse, que a “verdadeira riqueza social” consistiria em “tempo disponível” (com redução e eliminação do trabalho) para o “desenvolvimento livre das individualidades”. Já na versão do marxismo baseado na ontologia do trabalho, pelo contrário, a “lei do valor” é tomada como intacta, como fonte transhistórica do valor e da riqueza material, sem comportar negações e por isso, como algo “objetivo” e “necessário”, senão natural. Então a “crise” vai para debaixo do tapete, como fenômeno “grave” mas passageiro, e ninguém já quer discutir a gigantesca bolha de capital fictício ou o endividamento sistêmico geral como mais uma negação do valor, como índice da inviabilidade estrutural da produção em diversos setores que exigem investimentos cada vez maiores (dado o nível de produtividade e rentabilidade impostos socialmente no mundo globalizado) sob riscos de falência também crescentes que se manifesta desde empresas, regiões, países até continentes. Ao contrário, esperam ansiosamente um retorno à antiga situação – um novo ciclo de expansão do capitalismo no centro e na periferia – quando a bolha viria a se inverter em novos investimentos (que teriam de ser) produtivos (a “nova economia”), com reversão do desemprego etc. Como vimos, isto é negado pelo Manifesto Contra o Trabalho. Esta é a porta de acesso para os outros temas.

Visto por um certo ângulo, este Manifesto é uma crítica interna do tema hegeliano, tal como interpretado pelo jovem Marx, da experiência formativa e da autoprodução do Homem pelo trabalho (e por isso do sujeito com “consciência revolucionária”), pois este foi pensado, a partir do modelo do trabalho artesanal das cidades pré-modernas, como essência transhistórica (isto é, atravessando toda a história). Mas, não se pode separar o trabalho concreto do trabalho abstrato para salvar o primeiro: ambos tornam-se idênticos, ou seja, termos opostos em determinação recíproca. Isto é, o trabalho concreto (qualitativo) não é apenas materialmente abstraído sob a forma quantitativa do valor e do dinheiro (trabalho abstrato), mas também “reduzido realmente” (Marx) a “trabalho simples”, dilacerado, sem sentido, separado dos fins sociais sensíveis. O qualitativo já é abstrato, isto é, tende a ganhar uma forma adequada à abstração: é quando se completa a subsunção real do trabalho ao capital. E mesmo hoje, o tão afamado “trabalho complexo” do pós-fordismo está longe de “transformar os homens em poetas” e “formar consciência”. Ao contrário, tende-se à reprodução a enésima potência do mero sujeito ganhador de dinheiro e a perda de referências coletivas oriundas da fábrica é apenas a conseqüência disso. Mas seria preciso pensar, então, em toda a degradação do contexto social enquanto possibilidade objetiva abortada de formação (Bildung): da cidade estilhaçada pelo capital rentista até a escola burocratizada, da ciência instrumental até a indústria cultural (e a idéia prefigurada já por Adorno de “semi-formação”) e o renascimento do misticismo religioso. O que, desde pelo menos o jovem Lukács, se impõe para análise, é a potência do fetichismo do “trabalho realmente existente”, e no caso de Lukács isto teve como conseqüência sua tomada de posição política “ortodoxa”, em última instância, a favor do partido de tipo leninista, que “porta a consciência de classe” e a leva “de fora” para o proletariado “malformado”. Agora bem, no limite, vai ficando impossibilitado, num processo histórico e geográfico desigual, qualquer trabalho produtivo (e experiência formativa), substituídos pela simulação de trabalho e riqueza via capitalismo de cassino (dinheiro sem substância real) e pseudo-ocupações produtivas ! Portanto, a “formação pelo trabalho” há muito colocou-se num impasse: “Trabalho forma a personalidade. É verdade. Isto é, a personalidade de zumbis da produção de mercadorias, que não conseguem mais imaginar a vida fora de sua Roda-Viva calorosamente amada, para a qual eles próprios se preparam diariamente”, diz o Manifesto.

Neste sentido, refazendo sua genealogia, “trabalho” é um conceito que mascara sua constituição na experiência burguesa, protestante e iluminista do mundo – o ethos de dominação da natureza (e do feminino, do de cor, do estrangeiro etc.) – do homem branco, viril, maníaco pela atividade, que tende a perder a capacidade da própria experiência da diferença e da qualidade. E é preciso reler a história a contrapelo desvendando o poder de sua imposição. Foi o caminho da razão subjetiva ou instrumental, que tende a transformar o mundo em sua coisa. Foi a extensão de um modo de produção, de um modo de agir e pensar abstrato de acordo com fins irrefletidos, a todos os momentos da vida: o social, a vida doméstica, a “cultura”, o “tempo livre”, esferas separadas são anexadas e colonizadas pelo totalitarismo do trabalho, não estão mais intactas. Eis o mundo da equivalência: o fetichismo implica na produção de experiência (e consciência) social falsa – sob o império do modelo do trabalho. E seu campo de aparição é o espetáculo da vida cotidiana moderna, a “vida danificada” (Adorno). Assim, ao invés do proletário “consciente de sua negatividade”, eis o homem-mônada, isolado socialmente, que vive as situações segundo padrões de utilidade, eficiência e competição, orgulhoso de “ocupar” um “posto de trabalho”, vendo nos outros só a chance de trocar coisas ou de ganhar mais dinheiro, feliz em poder comprar mercadorias e patriota enquanto “luta” por políticas nacionais agressivas e pelo “direito ao trabalho” para seus conterrâneos. O próprio movimento operário quer “libertar o trabalho” e não “libertar do trabalho”. Positiva-se assim, uma vez mais, o alicerce liberal de “apropriação conforme o trabalho”, a base do direito natural e da equivalência geral. Ou seja, afirma-se sorrateiramente o valor-trabalho, máscara invisível do sujeito proprietário burguês, que, enfim, ainda calcula sua atividade, seu “esforço pessoal”, para poder trocar com um outro. A crítica do “ponto de vista do trabalhador”, reclama somente que esta condição é uma “ideologia burguesa”: o burguês não trabalha, mas explora e acumula, logo todos deveriam trabalhar, ganhar “salário justo” etc., como se uma sociedade de “troca justa” não fosse já fetichista, ou simplesmente fosse possível (sem conter sempre em germe o capital) !

Em Crítica ao Programa de Gotha, Marx antevia no interior do movimento que se queria emancipatório, a reprodução do direito burguês e do Estado, baseado na permuta e na equivalência geral. Em contraponto a isso, a condição para o comunismo era, então, a realização do lema: “a cada um segundo suas necessidades”, isto é, a não-submissão da possibilidade de participação do indivíduo na sociedade ao cálculo, hoje tornado obsoleto, do trabalho individual, lema contra a definição absolutista do trabalho como centro da vida social. Como possibilidade aberta após séculos de uma sociedade do trabalho, temos uma virtual sociabilidade das diferenças em que o indivíduo, finalmente, se reconciliaria com a sociedade, sem adequação forçada, isto é, sem ser subsumido à sociedade totalizada, como coisa ameaçadora. Ele se realizaria, de fato, como o diferente sem a coerção da identidade. Agora bem, a experiência social do trabalho é falsa pois indigna de seu conceito, pois neste queria transcender o que simplesmente já existe, não ser uma prática dominada por padrões alienados, queria, digamos assim, formar o homem consciente e livre, “universal” em suas diferenças.

Neste sentido, surge o diagnóstico do “colapso da modernização”(Kurz), subentendido como o da formação, em amplo sentido: o capitalismo não consegue efetivamente cumprir seus ideais de formação de liberdade, igualdade e solidariedade, nem mesmo seus materiais (abstratos). Como Marx desvenda, há um período em que as forças produtivas tornam-se destrutivas caso mantidas as mesmas instituições e relações sociais que as coordenam. Contudo, ao invés do momento da consciência disso, isto é, o desvendar das ideologias e a transformação destas relações, a práxis torna-se materialista vulgar, ela mesma a ideologia: a seleção “histórico-natural” dos mais aptos na concorrência, o trabalho como único meio de sobreviver, sua extensão, através da tutela do Estado, para todos os membros da sociedade, inflacionado para todos os momentos da vida ! A luta de classes mostra-se emperrada e em seus limites, pois dependeu o tempo todo da “forma-sujeito”. O costume e a vontade cega de uma falsa maioria, que quer ver o mundo meramente funcionar, sem perguntar pelo sentido, passam como verdade. Aqui, o fetichismo alcança sua realização máxima, na mera aceitação do curso realmente autônomo das coisas, identificando esta relação anacrônica como verdadeira e natural. Se no passado de acumulação primitiva, quando então “transformados em vagabundos”, o povo expropriado teve de ser, não sem resistência, “enquadrado por leis grotescas e terroristas numa disciplina necessária ao sistema de trabalho” (Marx, O capital), hoje estas leis tornam-se desnecessárias. A própria formação prática – a “educação”, a “tradição” e o “costume” de uma classe trabalhadora – dora a pílula do “trabalho forçado” (Marx). Evidencia-se aqui, enfim, os limites de uma subjetividade formada no interior dessa “Roda-Viva do fim em si mesmo” – subjetividade que clama hoje, em queda no abismo da pura sobrevivência, mais e mais justamente por mais trabalho – o que coloca, enfim, a aporia da emancipação.

Se a crítica tem de ser interna, ela parte do reconhecimento da contradição social que é tanto o coração lógico do sistema como a sua própria condição de possibilidade histórica como crítica. Auto-contradição que não deve ser confundida com a simples e má imediaticidade de conflitos sociais ou da luta de interesses classistas, mas desvendada no movimento negativo da acumulação e da concorrência do capital, através da posição e da negação do tempo de trabalho como medida do valor. Reconhecer, portanto, a possibilidade aberta pelas forças produtivas da microeletrônica, da sua junção no espaço urbano etc., na liberação de uma reprodução da vida para além desta forma de relação social obsoleta, nas brechas abertas pelo mercado em crise, através do uso social consciente das forças produtivas cada vez mais paralisadas pela lei da rentabilidade e da concorrência: terras, máquinas, galpões, conhecimento técnico etc.

Contudo, tal crítica tem, partindo dessa imanência, um momento interno-externo não capturado – o da não-identidade – quando descrê que o Conceito tenha a medida do Real, que o Capital como “Sujeito” e “Totalidade” tenha a racionalidade que ele de fato não tem. O que implica também em desmitificar criticamente todo a priori e toda identidade (posta ou em devir) das “filosofias do sujeito”: tanto o da superação automática do sistema, por inércia ou pretenso destino mítico (note-se contudo que afirmar o “colapso do sistema” ainda não é afirmar a superação do sistema), como aquele da “classe operária” predestinada e “portadora da dialética”; vale dizer, implica em historicizar a própria dialética e não torná-la ontológica ou movida por termos antropológicos, ou ainda ancorada em meros “sujeitos” realmente existentes (como simples luta de classes). Neste sentido, para que o melhor possível não se perca, a crítica dialética se conserva negativa.

Porém, há pistas para se pensar, embora o Manifesto não aprofunde, que a questão não é de mera consciência (“teórica” ou de classe e formas básicas atreladas, revolução etc.), mas da criação de um amplo contexto material de reprodução não-mercantil da vida comunicativamente organizado, isto é, uma produção social baseada no acordo mútuo consciente (ninguém mais é simples “mão-de-obra empregada”), contexto ele mesmo criador de “consciência” através da interação social. Só daqui surge a possibilidade de reavaliar profundamente as necessidades humanas e o uso do tempo e do espaço sociais (até hoje formados de modo “irrefletido” no valor de uso capitalista). Obviamente, a superação do trabalho não seria a eliminação do intercâmbio entre os homens e a natureza. Porém, este não se daria mais por mediações abstratas herdadas que eles próprios não escolheram. Aqui, apenas indica-se a chance de reatar, numa práxis escorada em outra matriz de racionalidade (uma “razão sensível” diz Kurz), o processo histórico com a velha idéia da experiência formativa que visava à superação da “pré-história” do homem (Marx).

Abre-se então a discussão das estratégias (sem “ativismo cego”) para “formas embrionárias” de emancipação social (que podem nascer como cooperativas autogestionárias de educação, moradia, saúde, alimentação etc.) “lutarem” – “antieconômica e antipoliticamente” – contra a força sugadora do redemoinho da imanência do Capital e do Estado. As lutas defensivas dos trabalhadores, ainda internas ao sistema, não deveriam ser descartadas, mas interligadas num movimento de recusa do trabalho. O que joga luz na ação daqueles que lutam, sem refletir, pela “inclusão social”. Em certo sentido, todos já estão “incluídos”. O que se impõe agora, de acordo com a melhor e mais “alta possibilidade” (Hegel, Ciência da Lógica), é a auto-exclusão.

Além do mais, resta a discussão sobre as possibilidades de reprodução social da valorização e das relações sociais, cujo nó górdio, é o trabalho: embora cada vez mais falhas, agora ameaçam, por isso mesmo talvez, para compensar sua debilidade, provocar muito mais sofrimento aos homens, sob a forma da precariedade e da inclusão ainda mais perversa, da simulação de trabalho, da ficcionalização financeira e da violência total. Neste ponto em que estamos, não criticar o trabalho é legitimá-lo como “segunda natureza”, aceitar o “protótipo da coação como se fosse a liberdade” (Adorno, Três estudos sobre Hegel).

Manifesto Contra o Trabalho (Grupo Krisis 1999)