31.12.2001 

A crítica do valor contra a barbárie económica

Amir Assadi

Cara redacção da Jungle World, olá,

a presente exposição é uma reacção aos artigos constantes do vosso dossier de 26.09.01. Visto ser um refugiado iraniano que vive na Alemanha desde 1987 que, sendo de Esquerda, conheceu o terror islamista, espero que a publiquem.

A crítica do valor contra a barbárie económica

Sou iraniano, refugiado por obra da economia mundial, vivendo na Alemanha há década e meia. Senti na própria pele o terror islamista e talvez seja este o motivo de ter ficado escandalizado com a brutalidade das posições contrárias à crítica do valor e anti-alemãs defendidas no último dossier da Jungle World de 26 de Setembro de 2001 (com contributos, entre outros, do senhor Thomas Heinrich, professor de história económica americana em Nova Iorque). Estas posições contrárias à crítica do valor são documentos do fracasso intelectual da Esquerda alemã.

A senhora Heike Runge (membro da redacção da Jungle World, um semanário esquerdista de Berlim) quer despachar todos os críticos do valor – ou seja, segundo tudo indica, também a mim – para o Afeganistão, porque “se eu fosse crítico do valor, mudava-me para o Afeganistão. Lá não se produz grande coisa e eu não teria tanto para fazer.” Que este peso pesado da Filosofia da laia de um Schily (Otto Schily (SPD/ex-Verde): ministro do interior federal alemão) e de um Beckstein (Günter Beckstein (CSU): ministro do interior da Baviera conhecido pela sua arrogância e obsessão securitária) teria todo o gosto em continuar a produzir valor e, com ele, mais-valias, não é mais que a sua obrigação democrática. A única coisa que me espanta é o seu analfabetismo solidário e inocente. É que tudo indica que ela não pressente qualquer conexão entre a situação presente no Afeganistão e o mundo como mercado mundial, assim como a História mundial. Trata-se de um recalcamento bem sucedido.

O senhor (Anton) Landgraf (membro da redacção da Jungle World) é mais consequente a este respeito, “visto que nesse caso o capitalismo é de preferir aos seus inimigos. … Se for necessário, também com o recurso à violência.” Caro senhor anti-antisemita, que tal um assassínio de massas sistemático de 5 milhões de afegãos famintos? Já que a sua fome é o produto da situação económica de outro planeta. Ou que tal uns ataques suicidas contra os bebés em Bagdade que sofrem com as consequências do embargo? Será que o senhor é mesmo cínico ao ponto de instrumentalizar os crimes cometidos pelos nazis contra os judeus para negar ou mesmo para relativizar a gravidade do sofrimento que o seu formidável capitalismo produz diariamente no aqui e agora?

“Neste caso” talvez até a Alemanha poderia ser convencida a aderir a uma coligação anti-alemã em prol da política humanista e emancipatória do estado de Israel. Mas antes de colocarmos a nós próprios estas questões coerentes com o ideário democrático, deveríamos ser cientes do facto do senhor Landgraf já há muito ter interiorizado o “choque de civilizações” (curiosamente, existem duas publicações com o nome “Clash of Civilizations”: A primeira é um livro (1991) e tem o extenso título “The Clash of Civilizations and the Remaking of World Order”. O autor, um Samuel P. Huntington, prevê que no século XXI as afinidades culturais serão o principal pólo de aglutinação entre países e os conflitos surgirão “ao longo das linhas divisórias entre as diversas culturas”, receitando aos EUA a cultivação da sua ocidentalidade. Qualquer neonazi, seja alemão ou talibã, adoraria as suas conclusões. – A segunda é um jogo de computador que curiosamente parte das mesmas premissas e prepara os nossos filhos em regime virtual para as “inevitabilidades” futuras.) De outro modo, ele não poderia falar dos “inimigos do capitalismo” ou até em “este caso”, em que teríamos de reagir, “se for necessário, também com o recurso à violência”. Aqui temos de atentar ao facto da palavra “capitalismo” ter sido utilizada meramente como nome de código para a sociedade mundial ocidental dita progressiva e democrática. O resto do mundo é, pelos vistos, apreendido como um “exterior” sombrio e bárbaro. A designação “capitalismo” é sujeita a um esvaziamento terminológico completo e degenera num mero chavão (de Esquerda). Tudo é aparência, é Zeitgeist (espírito da época). Na realidade, porém, a política postulada pelo senhor Landgraf e transposta pelo Mr. Rumsfeld redunda para os povos do Médio Oriente e os meus familiares na região numa política não menos esquerdista com resultados não menos bombásticos. É de uma grandiosidade assustadora.

Se a RFA precisou de 50 anos para fazer esquecer a sua própria história e, assim, poder instrumentalizar Auschwitz como bilhete de entrada para a guerra, a Esquerda (anti-)alemã e anti-crítica do valor nem de 20 dias precisou para recalcar a História do Médio Oriente. Mas de qualquer modo o mais certo é que nunca teve grande coisa para recalcar.

É difícil seguir a recomendação de Hegel e carregar sobre os seus ombros o peso da História para apenas assim aceder ao estatuto de indivíduo. É por isso que o antigo chanceler Helmut Schmidt (SPD) recomenda transformarmo-nos em “agentes adormecidos”. Por favor, não me acordem, mesmo que venha uma guerra. Como se esta ideia genial e original não chegasse, ainda acrescenta o seguinte: “No entanto também não quero pronunciar-me a favor da guerra, visto que esta debela apenas os sintomas da miséria, e não as suas causas”. Não nos escapa tratar-se de uma alma delicada! Que acanhado! Como será a “cura”, se a guerra já tem direito a honras de “tratamento de sintomas”? Então e quantos cadáveres deseja o senhor? Não se incomode, continue a dormir. Toda a humanidade está prestes a transformar-se num agente adormecido da economia de mercado. Happy end for you.

E Vossa Excelência, o senhor Heinrich, professor de história económica americana: “nem uma lágrima por Nova Iorque”? Não haja dúvidas: é difícil e chocante presenciar como conhecidos e habitantes da nossa própria cidade se tornam vítimas de um massacre. Acredite: sei de que estou a falar. Por isso pergunto-lhe enquanto novaiorquino e enquanto professor de economia: O senhor alguma vez também pensou nos meus compatriotas – para já não falarmos em lágrimas – quando bombas made in USA tiraram aos meus amigos as pernas e as vidas? Sentiu alguma coisa pelo meu primo de 18 anos quando ele, com muitos milhares de outras pessoas, morreu asfixiado e insuflado por bombas químicas made in Germany num hospital de Teerão? Será que o senhor como indivíduo (hegeliano) e como contador do conto de horror da história económica alguma vez se lembrou de que tudo isso aconteceu ao serviço do crescimento das SUAS soberanas economias nacionais e que qualquer ocidental, a não ser que se empenhe por um mundo mais humano para além da “História Natural”, foi expulso do paraíso com toda a justiça? O senhor acaso desmascarou, nos seus seminários, a essência da História económica como a história de assassínios e roubos em proveito dos filhos e das filhas do global player? De modo algum. Nada disso se pode depreender do seu artigo.

Em vez de se criticar um mundo colectivizado através da mercadoria e do valor, por toda a parte saturado de assassínios e violações, quem é atacado é um Robert Kurz que já em 1991 avisou para o perigo de uma “guerra civil mundial”. Para mim, esta constitui uma verdadeira participação emocional, muito mais do que as lágrimas causadas apenas pela experiência de perto, existencial e não mediada, de um assassínio de massas cometido por loucos.

Evidentemente acredito, tal como Robert Kurz, por si bem mal-entendido, em que o comportamento dos seres humanos não é, de modo algum, determinado em absoluto. Também os terroristas poderiam ter agido de outra forma do que o fizeram. Mas é precisamente isso que aponta no sentido de nós, como seres ainda humanos, podermos e devermos romper com a maquinaria desprovida de sujeito da produção de valor e loucura. De outro modo, este modo de existência e produção irá soterrar-nos em escombros, tal como já aconteceu a muitas vítimas da história económica não percepcionadas pelas câmaras. Nesse caso poder-se-á esperar de si algo mais que meia dúzia de lágrimas. Mas não diz o próprio senhor que tem mais problemas com a falta de lágrimas da Esquerda do que com o “totalitarismo global da economia”? Mesmo assim parece-me que a sua afirmação contém, ao menos, uma pequena réstia de verdade, porque o mundo certamente seria outro se os beneficiários do mercado global chorassem cada vida executada de forma premeditada e daí retirassem os devidos ensinamentos.

Tudo o que acontece hoje tem consequências para o amanhã. Embora não possamos desfazer o que aconteceu, podemos gorar os seus efeitos pretendidos se eliminarmos as causas. Neste sentido, uma verdadeira participação emocional dos novaiorquinos e pentagonianos deveria traduzir-se num movimento emancipatório contra o fundamentalismo do mercado – um movimento que o senhor rejeita com cinismo, recusando-se até a pensá-lo. Quem não é capaz de compreender os terroristas como um produto deste mundo único da não-humanidade e da “História Natural” da modernidade, enquanto propagandista da história económica mundial já fez a sua escolha entre a barbárie e a emancipação em detrimento das vítimas. E, assim sendo, parece-me que se tornou realidade a afirmação que Walter Benjamin faz no deu livro de 1940, “Sobre o conceito da História”: “Mesmo os mortos não estarão em segurança perante o inimigo, caso este vença. E esse inimigo ainda não parou de vencer.”

Um iraniano não produtor de valor e profundamente enojado pelo capitalismo global.

Tradução: Lumir Nahodil

Publicado em www.krisis.org em Setembro de 2001