31.12.2003 

Krisis 26 Editorial (Português)

Janeiro 2003

Quando, há mais de dois anos, iniciámos no seio da redacção da Krisis uma reapreciação circunstanciada do Iluminismo, estávamos firmemente convencidos de que, com semelhante atitude, estaríamos a colocar-nos a uma distância bastante apreciável do discurso social da actualidade. A crítica do Iluminismo afigurava-se um empreendimento pouco menos que esotérico, situado a milhas dos desenvolvimentos empíricos no seio do capitalismo de crise globalizado e dos discursos sociais em curso. Após os atentados do 11 de Setembro do ano passado, a situação modificou-se de forma radical. De um momento para outro, os assim chamados valores ocidentais da liberdade, da igualdade e dos direitos humanos voltaram a estar no centro de todos os discursos de circunstância. Esquecida está a crítica (embora desde sempre inconsequente) do universalismo abstracto do Ocidente, tal como ela tinha passado a estar na moda com o discurso pós-moderno. Quando a situação se torna séria, os sujeitos da mercadoria voltam, afinal, a recordar-se dos seus fundamentos ideológicos, tornando-se fundamentalistas.

O enorme alarido com que o Iluminismo ultimamente volta a ser invocado, no entanto, aponta no sentido de que este discurso, contrariamente à sua imagem própria que tão abundantemente alardeia, acaba por não ser tão “racional” como tudo isso. Por detrás da fachada dos “valores ocidentais”, bastante desgastada após a passagem de trezentas Primaveras, espreita indisfarçavelmente o medo puro e duro. Já lá vão os tempos em que parecia como se a gente pudesse – desde que negássemos a realidade na medida suficiente – estabelecer-se com uma comodidade razoável nos segmentos vencedores do mercado mundial, embora uma parte considerável do mundo se afundasse em fome, guerra e destruição. Após o estouro da “new economy”, não é só o processo de crise que alastra de uma forma perfeitamente perceptível também à vida quotidiana das classes médias metropolitanas. Lentamente vai-se entranhando, também na consciência do dia-a-dia, a constatação de que já não existe um retiro seguro neste mundo. Em tempos de uma violência flutuante até um banal dia de escritório em Manhattan, uma paragem para atestar o depósito numa bomba de gasolina em Washington, uma estadia de férias no Pacífico ou uma ida a um teatro de musicais em Moscovo pode trazer a morte a qualquer hora.

O que é especialmente nojento é a forma despudorada de que agora os tons racistas voltam a fazer-se ouvir. Sob a impressão da ameaça manifesta-se a essência do Iluminismo que já nos inícios dos anos noventa tinha sido trazida à luz sem quaisquer rodeios por ideólogos influentes como o filósofo-mor dos neoconservadores, Samuel Huntington, depois de ter permanecido um tanto ou quanto à sombra nos tempos do boom fordista do pós-guerra e sob os auspícios da assim chamada “concorrência entre sistemas”. Como reverso do suposto esclarecimento ocidental tem de servir sobretudo a caricatura maliciosa de um Islão fanático que nunca recebeu as maravilhosas bênçãos do Iluminismo. Isto nada tem de novo. Desde sempre a razão do Iluminismo constitui essencialmente uma tentativa “de afastar o medo que ela própria é a primeira a criar”, como Böhme/Böhme o expressaram acertadamente em Das Andere der Vernunft [O Outro da Razão]. O medo da própria violência e brutalidade e do seu próprio potencial destrutivo que ela nunca teve de admitir perante si própria vendo-se, por isso, sempre constrangida a recalcá-la e a projectá-la sobre um “outro” fictício.

Por si só, o renascimento do discurso colonialista e racista afigura-se sumamente grotesco num tempo em que a totalidade do globo terrestre, ao fim de um longo processo histórico, se encontra totalmente rendido ao ditado da produção de mercadorias. Nos tempos do colonialismo, os conquistadores do Mundo ocidentais, ao menos, ainda se viram a braços com culturas e sociedades diferentes, as quais, contudo, nunca aceitaram como tais construindo-as desde sempre como imagem contrária projectiva do próprio Eu esclarecido que ainda apenas se definia através da mesma. Desde o ponto de vista da razão ocidental, elas eram consideradas presas à natureza, impulsivas, avassaladas por desejos sensuais descontrolados, preguiçosas, violentas, supersticiosas, bárbaras e assim por diante. Deste modo não só qualquer sevícia colonialista era justificada como “civilizatória” como o Iluminismo se tornava, ao mesmo tempo, imune a qualquer crítica radical por se retirar a si próprio do seio da História. Como suposto ponto culminante do desenvolvimento civilizatório, o Iluminismo podia reivindicar-se de constituir a bitola pela qual todo o resto deveria ser avaliado. Acontece, porém, que o Ocidente, no que ao islamismo diz respeito, também tem que se haver de uma forma bem real com um fenómeno profundamente moderno. Se este é interpretado, apesar de tudo, dentro do velho padrão colonialista, imputando, por exemplo, acções terroristas ao Alcorão e à Charia, tal constitui desde logo um duplo recalcamento. Não se recalca apenas que este supostamente outro é uma construção, uma imaginação, o avesso da razão do esclarecimento e se encontra tanto logica como historicamente inseparavelmente associado a ela; mas igualmente o facto de que aquilo que ora se perfila como uma ameaça ao mundo do capitalismo que, afinal, é tão pacífico e digno de se viver, é o produto mais genuinamente próprio da história da imposição deste último e do respectivo fracasso.

São numerosos os lapsos traidores que deixam entrever quão estreito é o parentesco entre a loucura pela guerra santa do Ocidente e a dos seus adversários do recém-inventado “império do mal”. É esse o caso de um editorial transbordante de retórica democrática do chefe de redacção do semanário DIE ZEIT, Josef Joffe, publicado pouco tempo após os atentados ao WTC e ao Pentágono (DIE ZEIT, 31.10.2001): “Visto que o terror se encontra alojado como um parasita no tecido da globalização, os estados, com os seus meios violentos de impor o seu poder, têm de colocar o mal sob quarentena e eliminá-lo em seguida sem danificar o ‘hospedeiro’. Sem globalização não [haveria] liberdade de movimentos nem crescimento; bin Laden teria alcançado o seu objectivo.” Aqui não falta mesmo nada: a metáfora biológica do parasita e do hospedeiro saudável, a fantasia conspiracionária e o desejo de eliminação – com a única diferença de que agora já não é o “judaísmo internacional” quem ameaça o bom capitalismo do trabalho honesto mas, sim, o terror islamista. Assim vai-se juntando o que junto deve estar.

Tudo o que está presentemente a passar-se e a preparar-se por todo este mundo fora é sem dúvida suficiente para fazer-nos empalidecer com medo. No entanto é a própria racionalidade realizada do Iluminismo que aqui se torna visível. Tanto mais abjecta se afigura a tentativa de mais uma vez querer lavá-la, logo a ela, de toda a mácula. São precisamente intelectuais de esquerda – ou os que em tempos o foram – que participam neste jogo pouco apetitoso com um especial afinco. No Merkur, por exemplo, tivemos ocasião de lermos, logo a seguir aos atentados, a sabedoria de taberna de que o problema consistiria em que o islão não teria passado por nenhum período iluminista; e numa edição mais recente, com o título Riso, os editores Scheel e Bohrer concebem a original ideia de que, nos países árabes, a auto-ironia não estaria nos seus lugares – contrariamente, como é natural, ao riso sobranceiro do Ocidente que comportaria a força da negação do respeito e do autodistanciamento. Lá que isso é risível, é. No entanto o assunto é mortalmente sério. Trata-se de não só cavar uma trincheira contra os novos diabos-de-caixa islâmicos, como igualmente de erguer uma defesa profiláctica contra qualquer hipótese de uma crítica fundamental do capitalismo que se pretende desqualificar desde já como “inimiga da civilização”.

Até a assim chamada “sociedade da diversão”, sinónimo de uma alegria consumista de dentes cerrados, parece de repente ao Merkur como que uma conquista civilizatória que tem de ser defendida contra fundamentalistas islâmicos e pessimistas críticos da cultura. A ‘comedy show’ da RTL como estádio final do Iluminismo? De facto a verdade não anda longe disso. Mas quem não discernir nisso mais que uma forma de uma autocrítica involuntariamente cómica, no fundo só pode ser um membro da Al-Quaeda ou, no mínimo, seu simpatizante. Neste ponto, todos os democratas estão de acordo, de Condoleeza Rice e Samuel Huntington, passando por Joschka Fischer e Oriana Fallaci, até aos Savonarolas bonsai das seitas “anti-alemãs”.

Uma crítica radical do Iluminismo, tal como a iniciámos no número 25 da Krisis e a prosseguimos agora no número presente, tem de contar, face a esta constelação social, com resistências que de modo algum se encontram circunscritas apenas ao nível do discurso racional. Tal configura uma dificuldade a não subestimar. De forma inversa, no entanto, tal não significa, como é evidente, que qualquer crítica da crítica não passe de uma manobra defensiva inebriada pelo Iluminismo. Não resta dúvida de aqui nos movimentarmos por um terreno difícil. Num caso destes, as controvérsias são inevitáveis e até imprescindíveis. Entende-se por si que a sondagem deste terreno ainda nos deverá manter ocupados por mais algum tempo. De qualquer modo, muitas questões apenas se vão colocando conforme vamos avançando, e não são poucas as que não são pacíficas nem mesmo no círculo das autoras e dos autores da Krisis. A título de exemplo, é esse o caso da questão pelo posicionamento da crítica, tal como Anselm Jappe a formula, neste número, no artigo Uma questão de ponto de vista. Para além deste contributo, o enfoque na crítica do Iluminismo tem seguimento nos artigos Ontologia negativa, de Robert Kurz, A descida ao inferno do Eu, de Karl Heinz Wedel, assim como em Prática emancipatória e teoria crítica da felicidade, da autoria de Roger Behrens. O debate em torno da tecnologia genética, inaugurado na Krisis 24 e prosseguido no seu último número, tem continuidade num contributo externo que tem por assunto a investida capitalista sobre o genoma humano: O Renascimento do Homem Biológico de Birgit Niemann. A autora é bióloga molecular e membro da associação Gen-Ethisches Netzwerk e. V. [Rede em prol de uma ética genética]. No artigo Terão os situacionistas sido a última vanguarda?, Anselm Jappe debruça-se sobre a relação entre o fetichismo e a arte moderna, ao passo que Franz Schandl apresenta, em A final do direito, algumas teses sobre a subversão da forma do direito e Robert Kurz, em As calamidades naturais da sociedade, analisa a forma como as naturezas primária e secundária são deglutidas e destruídas no exemplo das cada vez mais frequentes cheias e secas catastróficas.

Resta apenas anotar que, quase em simultâneo com esta edição da Krisis, também saiu, na colecção Krisis na editora Horlemann, o novo livro de Robert Kurz: A guerra de ordenamento mundial. O fim da soberania e as metamorfoses do imperialismo na era da globalização.

Norbert Trenkle pela redacção

em Dezembro de 2002

Tradução de Lumir Nahodil