01.06.2004 

Vento que vem do sul

Lampejos de desalienação em meio ao colapso argentino

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Marco Fernandes

O capitalismo argentino foi à lona. Durante quase dez anos, o ex-presidente Carlos Menem fez de tudo para cumprir à risca a cartilha neoliberal do FMI: dolarização da economia, privatização em massa, derrubada de tarifas alfandegárias, enxugamento da máquina estatal e outras tantas reformas. Graças à paridade artificial com a moeda yankee, a classe média viu seu poder de compra aumentar da noite para o dia e agora ela podia consumir o mundo, estava realizada e apoiava seu presidente. E enquanto Michel Camdessus, ex-diretor do FMI, tecia elogios rasgados ao governo e apresentava o país como modelo de “Estado moderno”, a classe dominante argentina sonhava em finalmente adentrar o seleto clube dos “países do 1º mundo”.

Menem saiu do poder e deixou a batata quente na mão de seu sucessor, Fernando de La Rúa, que foi eleito para salvar o país da recessão que atingia a economia desde 1998, mas vai entrar para a história na ingrata posição de presidente deposto. Sua última medida para tentar evitar o colapso da economia foi politicamente suicida: decretou a retenção das poupanças e das contas correntes das classes média e alta para que o sistema financeiro argentino não virasse pó, depois que a desvalorização do peso provocou uma correria aos bancos. Foi a gota d’água para que a classe média enfurecida se somasse aos justos e raivosos protestos de desempregados e movimentos sociais que tomaram as ruas do país em 19 e 20 de dezembro de 2001. E a imagem de De La Rúa que vai ficar registrada nas mentes de todos é a de sua fuga de helicóptero da Casa Rosada para escapar da multidão enfurecida.

A festa consumista de quase uma década terminou numa ressaca histórica e o saldo é uma crise social inédita na história da República Argentina. O país se tornou uma espécie de “tipo ideal” da crise da sociedade do trabalho: dos 14 milhões de habitantes que compõem a PEA (população economicamente ativa), 2,4 milhões estão desempregados, outros 2 milhões recebem salário-desemprego e quase 3 milhões são funcionários públicos, ou seja, há um contingente de aproximados 7 milhões de trabalhadores que não produzem lucro. Por outro lado, dos 7 milhões de trabalhadores empregados, estima-se que em torno de 20% estejam em “subempregos”, uma vez que o valor real dos salários desabou a níveis relativos próximos aos de 1940. E o desemprego não é ainda maior porque, desde o ano 2000, mais de 260 mil argentinos se mudaram para o exterior. Para se ter uma idéia da dimensão da diáspora, basta lembrar que durante o período sanguinário da ditadura militar (76-83), menos de 40 mil argentinos abandonaram o país.

Existem hoje na Argentina, de acordo com o próprio governo, em torno de 21 milhões de pessoas abaixo da linha de pobreza. Num país de 37 milhões de habitantes, trata-se de uma tragédia, cujas conseqüências não são ainda mais graves porque o governo, temendo uma verdadeira ameaça à ordem, achou melhor se prevenir e abrir uma pequena fresta no cofre do Estado a fim de evitar a miséria absoluta de milhões de pessoas. São mais de 2 milhões de famílias recebendo os chamados “Planos Chefes e Chefas de Lar”, de 150 pesos por mês, o que certamente não satisfaz as necessidades mínimas de uma pessoa sequer. Um panorama inimaginável há algumas décadas numa nação cuja chamada “classe média” chegou a constituir 75% da população nos anos 70. Com a catástrofe econômica dos últimos anos, a classe média representa hoje menos de 30% da população.

Basta andar nas ruas da capital Buenos Aires para constatar os reflexos da crise em toda parte. Nos metrôs, crianças de até 4 anos de idade e adultos desempregados vendem de tudo um pouco. Em algumas praças, intermináveis filas são formadas durante o dia por pessoas em busca de um simples prato de comida. Todos eles disputando as últimas migalhas que a economia ainda reserva aos excluídos do mercado. À noite, pode-se ver dezenas de milhares de “cartoneros”: um verdadeiro batalhão de pessoas que recolhem papéis nos lixos para vendê-los por alguns trocados aos recicladores. Até há poucos anos, eles se resumiam a alguns jovens desempregados, mas hoje são famílias inteiras vagando pelas esquinas da capital portenha, tentando não morrer de fome.

Talvez em poucos lugares da cidade seja possível vislumbrar os resultados da política econômica dos anos 90 como em Puerto Madero. Outrora, uma região do porto da cidade que havia sido abandonada e que na metade da década passada foi escolhida para ser restaurada. Dezenas de milhões de dólares foram investidos na construção de modernas torres de arquitetura arrojada que atrairiam grandes empresas, além de hotéis, lojas e restaurantes de alto padrão para turistas com grande poder de consumo. Finalizando o conjunto, dezenas de iates luxuosos foram ancorados no pequeno rio do local, emprestando ao lugar um ar sofisticado que conjugava negócios e lazer.

Mas como a economia argentina não era tão calma como as escuras águas da Bacia do Prata, veio a recessão do final da década e muitas das obras pararam pela metade. A imagem atual é bizarra: ao lado de edifícios hiper-modernos e iates milionários, permaneceram restos de antigas fábricas não demolidas, prédios sem paredes e guindastes enferrujados, que transmitem ao passante a eterna sina dos países da periferia do sistema capitalista: a cada surto de desenvolvimento da economia, a classe dominante tenta se modernizar, mas como por aqui a torneira do crédito internacional abre e fecha rapidamente, são obrigados a conviver com as ruínas das quais queriam se livrar.

E é a partir de algumas dessas ruínas, que dezenas de milhares de argentinos tentam hoje reconstruir a sua vida coletivamente. Nos últimos anos, surgiram inúmeras organizações com o objetivo de responder à incapacidade das instituições de um sistema falido em garantir as necessidades mais básicas da população. Na periferia das grandes cidades, milhares de desempregados, chamados de “piketeros”, se organizam em movimentos combativos que afrontam o Estado e organizam a vida nos bairros de forma cada vez mais autônoma. Assim também o fazem as “assembléias barriais”, sobretudo nos bairros de classe média.

Com a retração de mais de 20% da economia do país nos últimos quatro anos e o fechamento de mais de 4.000 fábricas, alguns milhares de trabalhadores resolveram resistir à ameaça do desemprego, e em vez de engrossar o exército industrial de reserva, resolveram romper o tabu da propriedade privada e retomaram a produção das fábricas abandonadas pelos seus antigos donos. “Ocupar para produzir” é um dos seus lemas.

CONTROLANDO OS MEIOS DE PRODUÇÃO

Ainda é muito difícil obter um quadro completo das transformações ocorridas no interior das fábricas que foram ocupadas pelos trabalhadores argentinos nos últimos anos. Em parte, por se tratar de um fenômeno muito recente cujas conseqüências ainda são obscuras, mas também porque até agora somente uma pesquisa mais abrangente foi feita. Ela foi coordenada pelo Professor Gabriel Fajn, da Universidade de Buenos Aires, e reuniu uma equipe de pesquisadores. Contudo, a pesquisa foi fechada com as primeiras 87 fábricas ocupadas, enquanto já se estima que exista hoje em torno de 180 fábricas na mesma situação em todo o país, num total de mais de 10.000 trabalhadores produzindo em sistema de autogestão (no Brasil, estima-se que haja em torno de 30 mil trabalhadores em sistema de autogestão, aos poucos se organizando na ANTEAG – Associação Nacional dos Trabalhadores de Empresas de Autogestão – mas esta é outra história…).

De acordo com o Professor Fajn, das 87 fábricas que pesquisaram, 80% são de pequeno porte com uma média de 38 trabalhadores, e somente 20% possuem em média mais de 100 trabalhadores. Trata-se então de fábricas que, em sua maioria, ainda se enquadram no padrão fordista-taylorista, com baixo índice de adoção de métodos mais “avançados” de produção, ditos “toyotistas”. Constatou-se uma média de 52% de utilização da capacidade produtiva das fábricas, mas a maior parte delas se encontra próxima dos 40%. Por outro lado, percebeu-se que em 70% dos casos as fábricas atingiram, ou mesmo superaram, os níveis de produção anteriores à ocupação. Quanto aos salários, segundo Fajn, notou-se que em 16% dos casos continuou num nível similar, em 31% dos casos os salários são maiores e em 52% das empresas eles diminuíram. Mas é preciso levar em conta, diz Gabriel, que em algumas fábricas permaneceram pessoal de administração ou gerência, que certamente viram seus salários diminuírem, enquanto na mesma fábrica o salário dos trabalhadores da linha de produção tendeu a aumentar. Há casos excepcionais, como o da metalúrgica Union y Fuerza, que em dois anos pagou todas as dívidas (créditos, luz, água, gás e insumos), comprou um forno de 90 mil pesos e acumulou um estoque de 140 toneladas de cobre. Os salários aumentaram em quase quatro vezes.

Quanto à jornada de trabalho, continuou basicamente a mesma, em torno de oito horas, às vezes um pouco menos: é o caso da Brukman, em Buenos Aires, que teve uma diminuição média de 2 horas diárias na jornada. Uma preocupação dos pesquisadores era quanto aos perigos de “auto-exploração” numa situação de auto-gestão, mas a maioria das fábricas diminuiu a produção, e naquelas que aumentaram não se constatou um aumento da exploração do trabalho. Talvez isso se deva ao fato de que em 90% dos casos, foram eliminadas as hierarquias, tudo se decide por meio de assembléia, e todos, do faxineiro ao presidente ou coordenador-geral, ganham o mesmo salário. Essa é, provavelmente, a estatística mais interessante apontada pela pesquisa, já que demonstra uma grande mudança no cotidiano das fábricas a partir do momento em que se cria na assembléia um espaço aberto de discussão, troca de experiências e tomadas de decisão a respeito da produção e, eventualmente, das articulações políticas com outros setores da sociedade.

Fajn diz ainda que somente em 25% dos casos houve acordo entre patrões e empregados, enquanto que nos 75% restantes o conflito resultou em ocupações, acampamentos nas ruas, confrontos com a polícia e com os ex-donos. Por isso mesmo, ainda são muito instáveis a situação jurídica e o controle da propriedade das fábricas. Na maioria dos casos, o Estado aprovou uma expropriação temporária do edifício e das máquinas por 2 anos, mas não se sabe o que acontecerá ao término do prazo. Os trabalhadores lutam pelo direito de se tornarem donos das fábricas e o fazem apoiados nas imensas dívidas acumuladas pelos ex-donos: são centenas de milhões de pesos em salários e contribuição à previdência (a maior parte), além de impostos e contas de água, luz e gás. Mas é óbvio que o Estado argentino, dominado pela quadrilha de peronistas, não parece disposto a conceder aos trabalhadores a mesma benevolência que costuma reservar aos empresários na hora de perdoar impostos ou liberar créditos milionários. Mesmo porque, em inúmeros casos, os empresários seguiram a mesma estratégia: percebendo que com a crise econômica do país seria cada vez mais difícil manter as taxas de lucro desejadas, foram “esvaziando” as fábricas nos últimos anos. Dinheiro dos salários e da previdência, além de recursos para novos investimentos, vinham sendo desviados para especulações no mercado financeiro a fim de salvar suas fortunas pessoais. Revelando assim a nova realidade da acumulação capitalista: vender mercadorias não é mais um bom negócio…

LAMPEJOS DE DESALIENAÇÃO

Do ponto de vista da economia nacional, as okupas são ainda praticamente inexpressivas. E apesar da grande diversificação de setores da produção envolvidos nesta experiência, a constituição das redes de troca entre as fábricas – cujo funcionamento traria benefícios econômicos e políticos – ainda caminha lentamente. Contudo, este fenômeno inédito na história argentina vem produzindo conseqüências mais importantes do que a simples manutenção dos postos de trabalho nas fábricas falidas. Afinal de contas, que tipo de transformação pode ocorrer no momento em que o controle dos meios de produção é assumido pelos trabalhadores? O que significa para o coletivo de trabalhadores não mais ter de se submeter à hierarquias rígidas, nem tampouco às arbitrariedades dos patrões, mas sim assumir a responsabilidade pelo controle da produção e pelos critérios de distribuição da riqueza produzida? Ainda que a coerção das leis do mercado e seus limites objetivos continuem de pé, seria possível pensar na constituição de um “espaço autônomo” para os trabalhadores no interior das “fábricas sem patrão”? E o que se passa, então, com a subjetividade de um trabalhador envolvido neste processo?

Se levarmos em conta a dimensão assustadora que os índices de stress no trabalho vêm assumindo nos últimos anos graças à precarização das relações de trabalho (aumento da jornada, diminuição dos salários, medo do desemprego etc.) algumas das experiências que vêm sendo construídas com a autogestão adquirem uma importância ainda maior do ponto de vista político, pois demonstram em ato que a produção material da sociedade já poderia ser organizada de outra forma.

Conversas que tive com trabalhadores de algumas destas fábricas argentinas podem nos sugerir reflexões a respeito.

PRA QUÊ PATRÃO?

Quando pedi para Ana Maria, atendente da Clínica Junín, de Córdoba, para descrever o seu cotidiano antes ocupação da clínica, recebi resposta quase imediata:

“Te digo: antes eu chegava aqui, sentava nessa cadeira que você está vendo”, e ia reproduzindo seus movimentos enquanto os descrevia, “fazia meu trabalho o dia todo, e mal olhava para o lado. Enquanto eu estava aqui, era como se eu estivesse fechada numa ‘Tupperware’, sabe?”, e nessa hora usava as mãos para desenhar no ar o formato de um pote de plástico enquanto a cabeça permanecia olhando para baixo, como se estivesse trabalhando. “Depois”, continuou, “encerrado o expediente, voltava pra casa, morta, sentava na poltrona e ficava babando em frente à TV. Não podia, nem conseguia, pensar em nada! Também, não bastasse o duro que a gente dava, ainda tinha de ouvir patrão reclamando no ouvido da gente, e ultimamente nem receber a gente recebia.”

Em poucas palavras, Ana Maria sintetizava a experiência cotidiana comum à maioria absoluta dos trabalhadores. Submetidos a uma rotina de trabalho cada vez mais extensa e extenuante nestes tempos bicudos de crise do capital, as intermináveis horas passadas no local de trabalho são vivenciadas como uma estadia diária na prisão. E a volta pra casa, depois de horas de expropriação de seus corpos e mentes, é somente um breve alívio até que o despertador toque na manhã seguinte convocando a todos com a ameaça de exclusão do mercado de trabalho. Mas mesmo este “tempo livre” não pode ser aproveitado: depois de mais de 8 horas de trabalho, além do tempo gasto nos transportes coletivos (que em São Paulo e Buenos Aires chega facilmente a 4 ou 5 horas), não sobra muito para se viver. O corpo consumido durante o dia inteiro já não sabe mais de onde tirar energia, por isso, “babar em frente à TV” na sala de casa é praticamente a única alternativa (e no caso da América Latina não são poucos os que nem casa possuem). Contudo, para Ana Maria, as coisas parecem ter mudado um pouco de figura desde que, junto com seus companheiros da clínica, ela ocupou seu local de trabalho e passou a controlá-lo.

É verdade que as dificuldades financeiras ainda são grandes: por problemas jurídicos ainda não podem fazer internações; além do que, decidiram cobrar apenas 5 pesos (1,5 euro) por consulta, para que mais pessoas pudessem ter acesso ao atendimento. Por isso, cada um dos trabalhadores da clínica vinha recebendo em torno de 200 pesos por mês, pouco mais do que as migalhas do salário-desemprego e absolutamente insuficientes para os gastos mínimos mensais de uma pessoa. Ao contar isso, Ana Maria mantinha o semblante sério, mas depois de permanecer em silêncio por alguns segundos, como quem reflete friamente sobre o que está falando, soltou a seguinte pérola:

“Olha, cê quer saber de uma coisa? Tá tudo muito difícil aqui, é verdade! Às vezes dá até vontade de desistir… Mas uma coisa é certa e eu te digo: não há dinheiro no mundo que pague o fato de a gente não ter mais patrão!!!”,

e soltou uma gargalhada contagiante, num desabafo cuja verdade toca fundo no imaginário de quem, por precisar vender sua força de trabalho para sobreviver, tem de se submeter ao arbítrio do patrão, cada vez mais poderoso em tempos de escassez de empregos. Em geral, o fato de trabalhar numa “fábrica sem patrão” aparecia nos depoimentos como uma conquista inestimável, algo de que eles se orgulhavam e que representava uma mudança qualitativa em seu cotidiano tão sofrido. A figura do patrão, evidentemente, condensa as determinações capitalistas da produção: da expropriação da mais-valia ao regime de controle no chão da fábrica, da submissão obrigatória à hierarquia da produção até mesmo às relações pessoais de dominação diariamente repostas. Quando estas determinações se dissolvem pelo ato de ocupar a fábrica e reorganizá-la de forma autogestionária, os sujeitos readquirem a autonomia que a submissão obrigatória a seu patrão e às relações de trabalho impostas lhes roubava, conferindo uma dimensão inédita à realidade cotidiana de sua atividade.

REAPROPRIAÇÃO DO ESPAÇO E REORGANIZAÇÃO DA DIVISÃO DO TRABALHO

O controle do tempo e do espaço numa fábrica é um dos mecanismos fundamentais para garantir as demandas do lucro capitalista. O primeiro assegura que os trabalhadores cheguem e saiam na hora determinada pelo patrão, bem como mantenham o ritmo de produção exigido pela empresa; o segundo, que cada um ocupe na fábrica somente o espaço que lhe é determinado pela divisão do trabalho, e principalmente que não tenha acesso a todos os setores da produção, mantendo os trabalhadores no desconhecimento da totalidade do processo de produção em que estão envolvidos. Para essa função, gerentes e chefes de setor agem como policiais no chão da fábrica e são os responsáveis diretos por uma boa parte do stress produzido nos operários.

“Antes eu tinha de permanecer o tempo todo aqui no forno, não podia nem ao menos ir no setor ao lado conversar com um companheiro que já vinha alguém mandar eu voltar”, diz Angel, trabalhador da Cerâmica Zanon, enquanto aponta o setor ao lado há uns dez metros de distância. “Sabe, aqui tinha gerente pra tudo, eu nunca vi tanto gerente num lugar só! E o pior é que eles ficavam o dia inteiro pra lá e pra cá, pra lá e pra cá, fuçando que nem cachorro, procurando alguma coisa, um detalhezinho que fosse, pra implicar com a gente e dar bronca. Vocês podem imaginar o clima aqui dentro como era”!

A rigidez fordista da divisão do trabalho também começou a se dissolver com a autogestão das fábricas: primeiro porque grande parte dos gerentes, bem como do pessoal dos setores administrativos, abandonaram as fábricas quando estas fecharam por se recusarem a trabalhar num regime que lhes tirou os privilégios hierárquicos. Isto obrigou os trabalhadores a reorganizar a divisão de tarefas da fábrica. Além disso, como agora as questões internas são passíveis de discussão no espaço das assembléias, é possível conseguir uma mudança de função desde que aprovada pelo coletivo. É o que conta Sérgio, trabalhador da Brukman:

“Desde que ocupamos a fábrica as coisas também mudaram um pouco nesse ponto. A gente agora tem mais liberdade de escolher o que faz aqui dentro. Eu, por exemplo, trabalho no corte, mas também na administração, e às vezes, como agora, dou uma força nas vendas. É que, na verdade, quando alguém quer fazer alguma coisa diferente, é só levar o pedido para a assembléia, e lá a gente vê o que dá pra fazer. É legal assim, porque se alguém tem vontade de aprender uma outra atividade aqui dentro, a gente tem esse espaço para desenvolver outras capacidades. É bom, né? Fazer a mesma coisa o tempo todo, como era antes, é um pé no saco, chega uma hora em que a gente não agüenta mais!”

Quanto à jornada de trabalho e o controle do tempo, algumas mudanças significativas também ocorreram. Em virtude da diminuição da produção, em muitos casos a jornada de trabalho diminuiu. Contudo, mesmo onde ela permaneceu oficialmente a mesma, as coisas se passam de forma mais amena, além do que há novas necessidades de emprego do tempo numa fábrica que decide tudo de forma coletiva. De acordo com Rosa, da Zanon:

“Antes trabalhávamos realmente 8 horas por dia, mal podíamos parar para respirar, pois sempre tinha alguém para controlar a gente. Agora não. Em geral trabalhamos um pouco, fazemos um intervalo, tomamos um mate, voltamos ao trabalho, e assim vai. Acho que trabalhamos umas 4, 5 horas por dia. Veja só, ali está o nosso coordenador”, e apontava um senhor mais velho entretido com uma das máquinas, “e aqui estamos nós, tomando um pouco de mate e batendo papo. Além do que, agora temos outras atividades como assembléias e reuniões de setor, o que também exige bastante tempo, mas é menos pesado do que trabalhar na linha de produção”.

Todas estas transformações, além de nitidamente diminuirem a tensão constante e ameaçadora que os gerentes exerciam sobre os trabalhadores – o que representa em si um grande alívio na dura realidade da linha de produção – fizeram o próprio espaço da fábrica adquirir novas funções de sociabilidade entre os trabalhadores, transformando a relação que estes tinham com um espaço que não lhes pertencia. Quando perguntado sobre as impressões do primeiro dia de trabalho no novo sistema, Angel respondeu:

“Ah, foi muito estranho! Pra começar, não tinha ninguém passando pra controlar a gente. Às vezes, eu parava, olhava em volta, via os companheiros trabalhando concentrados, ou mesmo conversando, e não vinha ninguém atrás de mim, nem deles, pra tirar satisfação. Ao mesmo tempo, eu sabia que as coisas seriam mais difíceis agora, pois não bastava mais eu vir aqui e fazer o meu trabalho todos os dias e receber o salário no final do mês (se bem que nem salário se recebia mais!). A gente agora é responsável por tudo e na assembléia todos têm de decidir em conjunto o que vai ser feito, mas isto não é nada fácil.”

E ainda:

“Você pode imaginar que muita coisa mudou, né? A gente tem liberdade de se mover aqui dentro, e não só de conversar com o colega ao lado, mas de aprender também o que ele está fazendo. Então agora sei como funciona tudo, conheço todo o processo de produção das cerâmicas e acho que talvez por isso, a gente tem um pouquinho mais de orgulho agora, a gente sente que a cerâmica é mais nossa…”

Entre os ceramistas da Zanon, não são poucos os que têm aprendido nos últimos meses o funcionamento dos diversos setores da fábrica. Se o saber da produção vai sendo aos poucos socializado, fica cada vez mais difícil que ele se torne instrumento de dominação nas mãos de “sábios”. Muitos dos ceramistas se orgulham em mostrar aos inúmeros visitantes todos os momentos da produção da cerâmica, desde a chegada da argila, até o empacotamento dos pisos e revestimentos, e garantem, baseados em dados técnicos, que o índice de qualidade da produção aumentou desde então.

E agora que o local de trabalho lhes pertence, também é possível imaginar novos usos para este espaço, mudando a relação dos trabalhadores com ele. Como observa Sérgio, da Brukman:

“Mas você quer ver uma coisa que mudou bastante? Tá vendo quanta gente ainda tem aqui?”, e apontava com o dedo indicador o movimento de gente dentro da fábrica que era realmente grande. “Pois é, você já viu que horas são?”, olhava no relógio para confirmar, “São quase quatro da tarde! O final do expediente é às 3, e ainda tem um montão de gente aqui. Antigamente, quando dava três e dez já não tinha mais uma alma viva aqui dentro, a não ser, claro, a patronal… Ninguém ficava um minuto a mais! Agora, dá 3, 4 horas da tarde e o pessoal ainda tá por aqui: às vezes terminando uma tarefa, ou batendo papo, tomando um mate, esperando um companheiro ou companheira para saírem juntos…. É que aqui é como se fosse uma continuação da nossa casa, a gente se sente à vontade aqui dentro. Tem companheiras que até trazem os filhos pequenos quando não têm com quem deixá-los, aí a gente dá um jeitinho por aqui, se reveza, e a criançada passa o dia numa boa”. [1]

Aos poucos, o espaço da fábrica vai ganhando novos contornos e deixando de se assemelhar a uma espécie de cárcere: de alguma maneira, a cisão entre o espaço da casa e do trabalho vai se dissolvendo, porém não sob a forma de uma invasão da rotina de trabalho em plena sala de estar, ao contrário, nas palavras do próprio Sérgio, trata-se da apropriação de um espaço outrora privado, que ao assumir um caráter coletivo encontra novas funções no cotidiano dos operários. Em algumas fábricas no país, por exemplo, já existem “centros culturais” organizados por trabalhadores e estudantes, onde se organizam diversas oficinas (teatro, música, artesanato etc.) além da exibição gratuita de filmes e peças teatrais, aos poucos consolidando laços até então inexistentes com a vizinhança e com a assembléia do bairro: laços que vão muitas vezes garantir um razoável poder de mobilização, seja para ajudar a resistir à polícia, seja para conseguir sobreviver nos meses em que a produção ainda está parada.

O MITO DO SABER TÉCNICO

A restrição do acesso ao conhecimento técnico é um dos instrumentos mais eficazes da dominação de classe no interior da fábrica. O tipo de conhecimento que se possui determina desde o lugar em que o sujeito ocupa na hierarquia até o salário que ele recebe, e esse conhecimento depende, é claro, da classe da qual se faz parte: afinal, o diploma universitário é para poucos. Por isso, um dos casos mais reveladores das mudanças geradas pelas ocupações de fábricas me foi relatado por Eduardo, que trabalha no laboratório da Zanon, o setor mais importante da fábrica – responsável pelo planejamento da produção, fabricação dos maltes, das tintas e dos desenhos da cerâmica.

“Mas você já tinha experiência nesse serviço, estudou química?”, perguntei com ingenuidade. “Imagina! Comecei a trabalhar aqui porque estavam precisando de gente e me pareceu um trabalho interessante. Mas gostei tanto que aprendi rápido”, me explicava enquanto mostrava alguma das apostilas que estudava avidamente nos últimos meses para aprender a mexer com os produtos químicos. “Olha que eu nem terminei o secundário!”.

Como o coordenador do laboratório estava de férias, era Eduardo o responsável pelo laboratório naquele momento; e após uma breve pausa quando pareceu se dar conta da dimensão daquela experiência, soltou o seguinte comentário: “Veja você como são as coisas: antes o chefe do laboratório era um engenheiro, com diploma universitário e tudo. Ganhava muito mais do que qualquer trabalhador da linha de produção e volta e meia desqualificava algum companheiro do laboratório que chegava com uma idéia nova. Ele é que tinha estudado anos, ele é que sabia das coisas”, e com uma risada oportuna, concluiu: “Hoje o responsável sou eu, um jovem que aprendeu o ofício há poucos meses!”

A historinha que Eduardo acabara de contar revelava o quanto há de mistificação na hierarquia da divisão do trabalho no interior das fábricas. Muitas vezes, o saber técnico reivindicado por especialistas em determinadas funções e corroborado por um diploma universitário nada mais é do que um instrumento de legitimação de hierarquias caducas, pois dado o nível de especialização atingido pela divisão do trabalho há cada vez menos funções que não possam ser aprendidas por qualquer trabalhador após alguns meses de dedicação. A “exclusividade” desse conhecimento não é senão um fator de diferenciação no mercado de trabalho, um mecanismo que serve para justificar, na maioria dos casos, a brutal desigualdade de salários e o autoritarismo dos chefes [2]. Não é o caso da autogestão da Zanon, onde um rapaz que não terminou o secundário pode assumir a função outrora reservada a um engenheiro e ganhar o mesmo que a cozinheira, o faxineiro e todos os outros trabalhadores.

POLITIZAÇÃO E IDENTIDADE ENTRE OPRIMIDOS

As histórias das ocupações de fábrica na Argentina são mais ou menos semelhantes e beiram a epopéia: ficar meses sem receber salários, vivendo da contribuição dos vizinhos e das famílias, tendo de montar guarda permanente na fábrica para impedir uma ação de surpresa da polícia tentando efetivar a ação de despejo, lutando ao mesmo tempo contra o Estado e contra o patrão, organizando coletivamente a retomada da produção e todo o trabalho que isso demanda, para enfim experimentar na própria pele as possibilidades de mudança do cotidiano que o controle dos meios de produção nas mãos dos próprios trabalhadores pode proporcionar. O “antes” e o “depois” marcavam o ritmo dos depoimentos: a expressão corporal, o rosto e o tom da voz empregados na narrativa se modificavam muitas vezes durante a conversa de acordo com a experiência recordada.

Ana Maria, aquela mesma que lembra o significado do chegar em casa após mais um dia de torturas laborais – não conseguir mais pensar em nada, e por isso babar em frente à TV afundada na poltrona – deu a seguinte resposta quando lhe perguntei o que mais mudara em sua vida cotidiana:

“Agora, não. Eu venho aqui, trabalho, as coisas estão difíceis, como eu te disse, mas eu tô aqui, participo das assembléias com os companheiros, participo das assembléias do meu bairro, faço piquete na rua, e sei o que acontece no país; posso discutir com qualquer um! Me sinto parte de algo maior, de um coletivo, de um todo”.

Praticamente ninguém nas fábricas havia tido algum tipo de envolvimento com política, pois o fenômeno comum de desmobilização da classe trabalhadora nas últimas décadas é agravado na Argentina pelo fato de que a esquerda foi literalmente exterminada no país pela ditadura militar genocida: 30 mil pessoas foram assassinadas entre 76 e 83. Por isso mesmo, a politização gerada por esta experiência adquire um significado radical nas palavras de Angel, quando lhe perguntei o que costumava pensar ao ver os piketeros (movimentos de desempregados) se manifestando na rua, paralisando o trânsito e transformando a cidade num “caos”:

– “Aquilo me enojava!”, respondeu Angel.

– “Mas, por quê?”, indaaaguei cuidadoso.

– “Não sei, acho que n&atilllde;o entendia o que aquelas pessoas queriam com aquilo. Ficava pensando: pra quê isso tudo? Por que ficar lá, atrapalhando todo mundo, causando um grande quilombo, fazendo as pessoas perderem tempo e tudo o mais? Eu não conhecia ninguém do movimento, e não conseguia entender o que estava em jogo ali!”, nessa hora a expressão de Angel era a mais séria desde que começáramos a conversar. Ele sabia que estava tocando num ponto delicado e que sua resposta o expunha diante de uma pessoa desconhecida, mas não parecia preocupado em esconder seu passado.

– “Mas e agora, o que você aaacha disso?”, perguntei.

– “Agora, chico? Agora, EU fa&ccedddil;o piquete! Como já te disse, sabemos que se ficarmos aqui dentro vamos ser derrotados mais cedo ou mais tarde. Nossa luta tem de se dar aqui dentro e lá fora, e os piquetes são uma das melhores formas de mobilização que temos”!

A experiência de viver o mundo do ponto de vista de um desempregado que tem de se organizar para lutar coletivamente por sua sobrevivência fez com que Angel agora se identificasse com aqueles mesmos “delinqüentes” que há poucos meses deveria xingar, reproduzindo a visão da classe dominante. Ele precisou ir para as ruas protestar e reorganizar a produção, recebeu cassetadas da polícia, sentiu o terrível olhar de desprezo dos passantes que, como ele outrora, se enojam com tamanha baderna e entendeu “o que estava em jogo”: Angel diz que considera a luta dele dentro da fábrica como “anticapitalista” e que, certamente por isso, as coisas jamais serão fáceis.

Também é comum que essa falta de identificação e solidariedade com os desempregados se reproduza no interior da fábrica, entre os próprios trabalhadores. Em alguns casos, o desejo de ascensão e distinção social distancia pessoas de mesma origem e posição, impossibilitando a construção de uma identidade comum no local de trabalho. Isso também foi modificado pela experiência das ocupações, ao menos no caso de Gladys, trabalhadora da Brukman, que havia sido demitida um mês e meio antes da quebra e foi chamada de volta por seus companheiros assim que a fábrica foi por eles ocupada. Mais uma vez, o “antes” e o “depois” revelam o conteúdo transformador:

– “Ih, Marco, mudou tanta coisa… deixa ver… olha, no começo foi um pouco difícil pra mim a integração com os companheiros, afinal de contas agora a gente precisa se organizar e isso quer dizer que a gente precisa ter muito mais conversa, mais diálogo entre a gente, não dava mais pra chegar aqui, receber as ordens, fazer o trabalho e ir pra casa. Pra começar, que não há mais “ordens”, a gente decide tudo em assembléia, né? E antes eu não tinha muita relação com o pessoal daqui, sabe como é…”

– “Você não tinha amiiizade com o pessoal da fábrica?”, senti pela sua expressão nesse momento que tocava num ponto delicado para ela

– “Ah, muito pouco, viu. É que… eu não me identificava muito com o pessoal daqui… Sabe, eu também venho de família humilde… mas eu pude estudar, fiz faculdade de comunicação na UBA, minhas amizades eram outras, sei lá… eles eram de outra classe, nem temos o mesmo vocabulário, essas coisas… não tínhamos muito diálogo… Além do que, é verdade que eu também tinha uma vida muito corrida: trabalhava aqui o dia todo e quando terminava o expediente tinha de sair correndo pra faculdade assistir as aulas, daí não sobrava tempo pra mais nada.”

– “Mas então depois de tudooo o que aconteceu… as coisas mudaram?”, continuei.

– “Mudou, mudou bastante. Sim. Agooora eu conheço todo mundo, e tenho amizade com muitas pessoas aqui dentro. E eles confiam mais em mim também. Acho que pra mim a mudança mais significativa foi mesmo a relação com as pessoas aqui dentro, hoje eu me sinto mais unida ao pessoal, tenho mais identificação. Acho que é isso, sim.”

A experiência da ocupação da fábrica foi, pelo visto, capaz de transformar pessoas a cuja visão de mundo atribuiríamos um certo grau de “conservadorismo”: que eles sejam capazes de reconhecer suas limitações ideológicas anteriores à experiência, elaborá-las e transformá-las num sentimento de identificação com os dominados (que, afinal de contas, são eles mesmos) nos traz um pouco da dimensão de politização individual e coletiva envolvida na história das okupas: mudou a maneira como essas pessoas encaram o mundo à sua volta, como vivenciam sua posição objetiva nas relações de produção e o inevitável conflito com o capital . Ou como costuma dizer Célia, da Brukman:

“Até alguns meses atrás eu era somente uma dona-de-casa. Hoje, quero mudar o mundo! E isto significa lutar pela construção do socialismo!”

A ZANON E A DESMERCANTILIZAÇÃO DA PRODUÇÃO

A experiência da Cerâmica Zanon talvez seja, entre as okupas, a mais avançada do ponto de vista político. Outrora uma gigante do setor, a Zanon chegou a controlar, nos áureos tempos, em torno de 20% do mercado de cerâmica argentino, além de exportar para mais de 30 países. Faturava em torno de 100 milhões de dólares e contava com a boa vontade do Estado na hora de conseguir crédito e financiamento. Nos últimos tempos, insatisfeito com as taxas de lucro de sua fábrica, Luigi Zanon fez como a maioria dos empresários: começou a esvaziar a fábrica e deixou de pagar salários e impostos, enviando a grana para algum paraíso fiscal onde pudesse manter sua fortuna no cassino do mercado financeiro.

Depois de quase um ano de luta, que começou reivindicando mais segurança na linha de produção (um jovem morreu num acidente de trabalho), se estendeu pelo pagamento dos salários atrasados, pela conquista da direção do sindicato (antes controlado pelos patrões) e culminou com a ocupação da fábrica, os ceramistas parecem ter atingido um nível de organização e de consciência política que impressiona pelo conteúdo de suas novas reivindicações. De acordo com Manotas, coordenador-geral da fábrica eleito pela assembléia:

“Nós não queremos ser uma empresa capitalista como todas as outras. Não queremos simplesmente produzir cerâmica e vendê-la no mercado para quem pode comprar, e depois embolsar os lucros. Aliás, se fosse assim, já poderíamos estar ganhando mais de 800 pesos aqui. Mas não, não é esse o nosso objetivo, pois sabemos que sozinhos não vamos nos salvar! Por isso, reivindicamos a estatização: em primeiro lugar, porque queremos que o Estado assuma os investimentos necessários ao aumento da produção e do número de trabalhadores. Mas principalmente, porque queremos produzir para atender as necessidades concretas da sociedade, quer dizer, produziríamos cerâmica para escolas e hospitais públicos, para moradias de baixa renda etc., tudo isso junto com um Plano de Obras Públicas financiado pelo Estado e que poderia empregar muita gente, além de responder às necessidades da população. Dessa maneira, os lucros da fábrica seriam revertidos para toda a comunidade”.

Os ceramistas vêm lutando pelo projeto de “estatização sob controle operário”. Não se trata de nenhum tipo de ilusão quanto a soluções estatistas para a crise do capital, mesmo porque se referiam ao Estado como uma corja de ladrões e assassinos: além da recente experiência da ditadura, ficou muito claro para os ceramistas, durante todo o processo de ocupação, em nome de quais interesses o Estado fala e age. Trata-se simplesmente de uma solução estratégica para garantir, por um lado, os investimentos necessários ao aumento da produção e dos empregos, e por outro, mais importante ainda, como tentativa de desmercantilizar a sua produção: em vez de simplesmente produzir cerâmica para trocá-la por dinheiro no mundo da mercadoria, os trabalhadores da Zanon preferem lutar para que sua fábrica adquira o caráter de coisa pública, e produza para atender a demanda de edifícios públicos e de famílias de baixa renda.

No atual contexto argentino é muito difícil que este projeto seja aprovado pelo Estado, mas enquanto isso, os ceramistas vão fazendo o que podem neste sentido, dirigindo seus lucros e dívidas com o Estado para fins coletivos. Há alguns meses, a Província de Neuquen cobrava uma dívida do antigo dono e pressionava a fábrica: os ceramistas aceitaram pagar a dívida, mas sob uma condição: o pagamento seria em cerâmicas ao invés de dinheiro, e eles mesmos determinariam o destino dos produtos. Dessa maneira, algumas escolas, hospitais e instituições sociais foram diretamente beneficiados pelo pagamento da dívida, que certamente desapareceria no poço sem fundo dos cofres estatais. Outra medida inovadora vem sendo concretizada junto ao MTD de Neuquen (Movimento de trabalhadores desempregados da região). Os ceramistas estão juntando dinheiro para financiar a construção de uma fábrica de caixas de papelão para empacotar sua produção. A fábrica, é claro, será autogerida pelos integrantes do movimento, que aliás já têm preferência na hora em que a Zanon precisa incorporar mais trabalhadores à fábrica. Desde o começo do ano, já incorporaram mais de 30 novos companheiros, e segundo sua política interna, metade das vagas se destina ao MTD e a outra metade é dividida entre outras organizações (parte dos lucros da fábrica também ajudam a financiar um “fundo de greve nacional”, para que outras fábricas que forem ocupadas disponham de um mínimo de recursos até que volte a produzir).

Esta é, aliás, outra novidade na luta dos trabalhadores da Zanon, pois as transformações surtidas no interior da fábrica já se espraiam por seu entorno: eles têm conseguido se articular com outros movimentos, sindicatos e partidos de esquerda. Ajudaram a fundar a “Coordenadora do Alto Valle”, uma espécie de central autônoma de lutas políticas da região e vão se tornando, aos poucos, uma referência no interior dos movimentos sociais.

LABORATÓRIO PARA O SOCIALISMO?

“Enquanto, porém, a virtude não for recompensada aqui na Terra, a ética, imagino eu, pregará em vão. Acho também bastante certo que, nesse sentido, uma mudança real nas relações dos seres humanos com a propriedade seria de muito mais ajuda que quaisquer ordens éticas”. (Sigmund Freud, O Mal-estar na Civilização)

Seria arriscado emitir um juízo mais categórico a respeito das transformações ocorridas no cotidiano e na subjetividade dos trabalhadores das fábricas ocupadas, pois as conversas que tive durante janeiro e fevereiro de 2003 se limitaram a 3 fábricas (Zanon, Brukman e Grissinopolis) e à Clínica Junín. Também é verdade que nestes lugares, os depoimentos dos trabalhadores eram muito semelhantes e a percepção das mudanças ocorridas em seu cotidiano partiam de pontos comuns (por uma questão de limites de espaço selecionei alguns depoimentos que resumiam as questões abordadas, mas pude conversar com mais trabalhadores dos que aparecem aqui). Sem dúvida, é preciso mais material empírico, mas não é de se estranhar que a experiência possibilitada numa fábrica autogestionária detone mudanças subjetivas em todos aqueles acostumados à vivência diária, individual e coletiva, do sofrimento no trabalho (e da falta dele).

Voltamos então a um dos pilares do materialismo histórico: a tese que diz que o modo como a produção material da sociedade é organizada determina a subjetividade dos indivíduos. Mas e o que acontece com estes mesmos indivíduos quando, a despeito da sociedade permanecer capitalista, suas condições concretas de produção são modificadas? Pelos depoimentos que ouvimos, é como se a “teoria da alienação” encontrasse sua demonstração empírica negativa, ou seja, a algumas mudanças fundamentais no funcionamento de uma célula produtiva correspondesse algo como “lampejos de desalienação” dos sujeitos. De alguma forma, uma crise grave de reprodução do capital – além de gerar miséria e exclusão – também pode revelar conteúdos sociais fetichistas encobertos pelas leis gravitacionais do mercado ou pelo simples poder social dos donos dos meios de produção.

E estes “lampejos” parecem gerar conseqüências políticas nada desprezíveis quando o que se tem em vista é a superação do “sistema produtor de mercadorias”. Para que haja movimentos emancipatórios é preciso haver “subjetividades anticapitalistas” capazes de organizá-los, e isso parece estar sendo gestado em experiências como as das okupas. Em geral, eu perguntava aos trabalhadores, depois de toda a conversa, se alguma vez passara pela cabeça deles que seria possível tocar a produção de uma fábrica sem hierarquias nem patrões. As respostas, como era de se esperar, eram mais ou menos a mesma que me deu Angel:

“Jamais! Nunca achei que isso fosse possível. Aliás, acho que ninguém aqui achava que seria possível. A gente ajudava a planejar o nosso setor, e olhe lá. Eles fazem a gente acreditar que não somos capazes, mas estamos mostrando aqui, todos os dias, que podemos controlar a produção, que todos os trabalhadores são capazes de fazer o mesmo!”

Ao lado dos mecanismos objetivos de dominação – como a coerção econômica e as armas da polícia – a classe dominante também conta com mecanismos subjetivos para manter a ordem que lhe interessa. A submissão aos mecanismos de mercado e às ordens hierárquicas no trabalho cotidiano sustentadas pela coerção produtiva são parte do arsenal utilizado para fazerem os dominados “acreditarem que não são capazes”, retirando-lhes a capacidade de agir e falar em nome de interesses que não são os do lucro. Nesse sentido, estar imbuído da tarefa de controlar os próprios meios de subsistência (ainda que as leis do mercado continuem sendo uma ameaça) pode representar uma espécie de “fortalecimento egóico” indispensável para a construção de “formas embrionárias anti-sistêmicas” que apontem para além do mundo da mercadoria e do capital.

E se o capital já esbarra em limites de sua reprodução, demonstrando cotidianamente a sua incapacidade de resolver os problemas materiais (e espirituais) de uma parcela cada vez mais gigantesca da população, algumas experiências nas fábricas argentinas vêm provando na prática que imaginar uma sociedade onde perguntas do tipo: “o quê?”, “como?” e “pra quem?” produzir, podem ser respondidas pelos próprios trabalhadores organizados e não pelas leis cegas do sujeito automático. Num país que produz comida, segundo a OMS, para 300 milhões de pessoas é um crime que 7 milhões dos 37 milhões de seus habitantes se encontram abaixo da linha de pobreza, quer dizer, passam fome. Mas não é de crimes que é feito capitalismo?

A questão política central, afinal de contas, é: Quem controla os meio de produção? Uns poucos proprietários ou o conjunto dos trabalhadores organizados? Revolucionar o modo como a sociedade organiza sua produção material, socializando seus meios produtivos – isto é, máquinas e conhecimento – , é nossa única chance de escapar da barbárie devastadora que o capitalismo vem gerando dia a dia.

É no que pensa Manotas quando, do alto de sua experiência, afirma:

“Veja o tamanho dessa fábrica. É imensa, automatizada, com computadores e tudo o mais. Estamos aqui dentro provando que os trabalhadores podem administrar e controlar a produção! E eu te pergunto: se fazemos isso aqui, porque não podemos fazer isso no país inteiro, no continente inteiro?”

Por que não?

[1] “Os operários só se sentirão realmente em suas casas, em seu país, menbros responsáveis pelo seu país, quando se sentirem em casa na fábrica, enquanto trabalham”. (Simone Weil, A condição operária, p.166).

[2] o mesmo que fica evidente num diálogo entre André Gorz e um jovem técnico subalterno – que se dizia maoísta. O jovem estudara 3 anos e ganhava duas vezes mais do que um operário. Perguntado sobre a diferença de conhecimento existente entre ele e os operários que supervisionava, respondeu: ” (jovem maoísta) Fiz cálculo diferencial e mecânica e sou muito bom em desenho industrial. /(Gorz)Você usa cálculo diferencial no seu trabalho?/ (jovem) Não. Mas foi bom eu ter feito. Serve para formar a mente. / (Gorz) E o desenho industrial, você usa bastante? / (jovem) Lógico. A gente não consegue acertar uma peça se não souber ler o esquema do plano. É o beabá. / (Gorz) Mas, se todos os operários sabem ler o esquema do plano, que conhecimentos você tem que eles não têm, além do cálculo diferencial? / (jovem) Tenho a visão do conjunto. O meu pessoal está, cada um, com o nariz na sua máquina. Eu conheço as possibilidades de todas as máquinas, preparo e organizo seu trabalho e, quando há um problema, explico-lhes como resolver. / (Gorz) Será que os operários poderiam saber tanto quanto você sem ter estado numa escola como a sua? / (jovem) Há uns velhos na minha oficina que sabem um colosso. Só que leva tempo. / (Gorz) Quanto tempo? / (jovem) Oh, ao menos cinco ou seis anos. (André Gorz, Crítica da divisão do trabalho, p.236-7).