21.01.2022 

Brasil em tempos de declínio social. Comentários sobre a pós-política no governo Bolsonaro

Marcos Barreira

Observação preliminar (fevereiro de 2022):
Este texto foi escrito a inícios de 2020, mais de um ano antes da escalada golpista de sete de setembro de 2021, que criou uma tensão entre o governo e a cúpula militar, como havíamos indicado. Desde então, há uma mudança importante no cenário que descrevemos: a perda de apoio de Bolsonaro nas camadas médias enfraqueceu a polarização entre o populismo de direita e o sistema de partidos tradicionais, com uma ampla incorporação desses partidos à base do governo. A ambiguidade do governo nesse campo, como também na gestão da pandemia, que o faz oscilar entre a sabotagem e as medidas que garantem uma precária estabilidade, leva o clã Bolsonaro a atacar agora, em primeiro lugar, o sistema eleitoral. Com o agravamento da crise, derrete também a popularidade do governo entre os mais pobres, e isso tende a levar o núcleo militante de Bolsonaro, que inclui a tentativa de criar um dispositivo paramilitar informal, à contestação violenta do processo eleitoral. Esse quadro, marcado pela ascensão rápida da violência difusa e do fundamentalismo religioso, bem como pelo impacto das teorias conspiratórias, mostra a ilusão de uma “transição política” normal e aponta para o aumento da tendência de asselvajamento da administração da crise. 

Pouco a pouco o mundo toma conhecimento das proezas de Bolsonaro na presidência da nona economia do mundo. Um editorial recente do Washington Post o classifica como “pior líder mundial” no combate à pandemia e a revista The Economist o inclui no pequeno grupo de lideranças exóticas “negacionistas” e com perfil autoritário. Isso condiz com a trajetória folclórica e isolada desse político do “baixo clero” que fez carreira defendendo crimes praticados pela ditadura militar e que, na eleição de 2018, declarava-se abertamente ignorante em assuntos econômicos. Por trás da personagem grotesca e do seu círculo de apoiadores, no entanto, delineiam-se tendências estruturais de esgotamento da própria forma política no contexto mais geral da crise da integração pela “sociedade do trabalho”. É esse contexto de declínio social que permite ao governo Bolsonaro transformar as próprias instâncias do governo em fatores de crise.

De fato, quer se trate da agenda econômica, da emergência médica ou da crise socioambiental, o governo Bolsonaro tem atuado como um fator constante de desestabilização. Isso sem mencionar o ataque direto aos demais poderes. Enquanto a equipe econômica de Paulo Guedes prossegue com os cortes em serviços básicos e sonha com um projeto de privatização ainda mais amplo que o da década de 1990, o Congresso – que segue como alvo da militância em torno de Bolsonaro – presenteou o governo com uma reforma do sistema previdenciário que decreta o fim da aposentadoria para amplas camadas da população, especialmente nas regiões mais pobres. Até mesmo onde havia um acordo com a maioria conservadora, a ação do governo se limitou a garantir privilégios corporativos para o custoso setor militar. Em divergência com as medidas restritivas contra o desmatamento na Amazônia, Bolsonaro assumiu ter “potencializado” os incêndios criminosos. Também as declarações de integrantes do governo contra parceiros comerciais prejudicam seus apoiadores do agronegócio, enquanto as iniciativas de “desregulamentação” das leis ambientais começam a ser exploradas por concorrentes estrangeiros na corrida global pelos fundos de investimento. Nem a pandemia e o dramático agravamento da crise modificaram esse padrão: o governo tomou medidas que apenas esvaziam o papel da “política”, fazendo o país atravessar a alta do contágio com um Ministério da Saúde imobilizado e sem qualquer diretriz técnica.

Esse caráter disfuncional do governo tem sido explicado, de um lado, como incompetência ou ausência de quadros; de outro lado, como uma estratégia de produção permanente de crises, por meio da qual o clã Bolsonaro anima as suas bases. Está cada vez mais claro, porém, que por trás da má condução do governo ou da estratégia de conflitos não há nenhum projeto a não ser o simples desmonte da regulação política e o favorecimento de grupos empresariais e corporações aliadas a Bolsonaro – e tanto a “classe política” quanto as elites empresariais que o toleraram até aqui já sinalizam com uma possível ruptura. Diante da ausência de medidas contra a crise social, até mesmo a retórica radical de mercado começa a ser questionada.

Desde a década de 1990, as políticas de “estabilização” e as reformas de mercado mostraram-se incapazes de deter o desemprego em massa e a precarização das condições sociais. O esgotamento do processo de modernização – fim do “milagre econômico” do período militar – e a incapacidade de os grandes centros urbanos absorverem a força de trabalho expulsa pelos complexos agroindustriais ou pela falta de alternativas econômicas no interior do país, criaram a necessidade de mecanismos de contrapartida social. Durante a Era Lula, esses programas foram estruturados em larga escala e idealizados como um meio de salvação do capitalismo. A retórica do Estado com ênfase social ou do “capitalismo popular” servia como justificativa para a integração das massas pelo consumo durante o boom das matérias primas. No entanto, o ideal declarado de produzir uma “nova classe média” através da cobertura social básica, da ampliação do salário mínimo e da proliferação de empregos de baixa renda forneceu apenas uma miragem de integração pelo trabalho e consumo em massa dissipada no período que se seguiu à crise de 2008. A queda dos preços internacionais fez a situação da economia brasileira se modificar bruscamente e colocou um fim à conjuntura de crescimento que deu origem ao “pacto social” lulista.1 O saldo da economia política da Era Lula foi uma enorme regressão da produção industrial. Ainda no contexto do arranjo conservador inaugurado no governo Lula, a grande injeção de dinheiro público na economia para compensar a queda no preço das exportações foi transformada pelo pensamento apologético “progressista” em um novo modelo sustentável de desenvolvimento. O lulismo condensou, assim, três momentos da crise da política: o deslocamento geral para a “direita”, a redução da política a uma administração da crise social inteiramente subordinada à lógica econômica e a tendência geral para a simulação.

Seguiu-se à Era Lula, depois do processo de impeachment de Dilma Rousseff, um novo arranjo político liderado pela antiga oposição e com base no descontentamento das camadas médias. Esperava-se que a troca de governo, com sinalizações pró-mercado, resultasse, por si só, na “retomada da confiança” dos investidores. Mas a simples expectativa gerada pela troca da cúpula política era obviamente incapaz de reverter o quadro de crise. O aprofundamento da recessão e a campanha de grupos organizados no interior do estamento burocrático (por meio do MPF e da PF) contra os grandes partidos inviabilizaram o novo governo. Quando as lideranças do PT aderiram de modo realista ao pacto com o sistema partidário de maioria conservadora e deram ênfase à administração da crise social, tratava-se não mais de algum tipo de “reforma”, mas de um acordo de sobrevivência do próprio sistema, cujo esgotamento era evidente. A ruptura desse acordo interno do sistema político só poderia antecipar uma grave crise institucional e abrir caminho para processos violentos de desintegração nos quais a esfera da mediação política começa a ser questionada.

Com a candidatura Bolsonaro foi criada uma resposta ainda mais conservadora e brutal ao desmantelamento do sistema político. Ela foi capaz de alcançar todas as camadas sociais, o que significa não só a incorporação da “classe média”, concentrada no Centro-Sul do país, que recusou o “pacto social” lulista e, sob a influência da operação Lava Jato, estendeu essa recusa ao sistema partidário, mas também um modo diferente de lidar com os segmentos empresariais e com as massas populares. O discurso de Bolsonaro apostava, em primeiro lugar, no extremismo ideológico pró-mercado que emergiu como reação ao “protagonismo estatal” da Era Lula. Isso vale tanto para os discursos que emanam dos mercados, quanto para a ideologia regressiva dos setores médios individualizados e precarizados, estes novos “empresários de si mesmos” que sonham com um capitalismo puro, “sem Estado”, isto é, sem qualquer regulação das atividades econômicas que, pra eles, tornou-se sinônimo de fardo burocrático. Um traço comum a ambos os discursos é que a crise, cuja manifestação local mais aguda era visível por volta de 2014, foi reduzida desde o início ao mero efeito da ação política, ao passo que as reformas de mercado apareciam como um retorno à “normalidade” do capitalismo.2 Com o fator novo da pandemia, que encontra um país marcado pelos cortes nos serviços básicos e políticas públicas desmontadas, esse antirrealismo é agravado. Ao mesmo tempo em que se pretende estender aos idosos e debilitados a lógica do darwinismo social que já atinge os pobres e derrotados na concorrência, o governo tenta atribuir aos governadores, como representantes da “política”, o agravamento da crise a fim de reforçar sua base de apoio militante.

Ao contrário de Lula, que construiu sua base eleitoral em acordos com as elites e com os partidos que garantiam a estabilidade política, tendo nas camadas populares apenas uma base passiva, Bolsonaro chega ao governo com um apoio bem mais ativo não só nas camadas médias tradicionais, mas igualmente na população de baixa renda. Sua candidatura se alimentou tanto da energia dos protestos de rua “contra a política”, quanto dos movimentos fundamentalistas protestantes de base popular, nos quais a figura de Bolsonaro muitas vezes assume um status quase messiânico. Tais movimentos ganharam corpo nas últimas décadas como formas periféricas de coesão social fora da esfera política, o que representa uma resposta à incapacidade do Estado em lidar com a crise nas áreas mais afetadas pela exclusão social. Eles se encaixam, assim, na tendência geral de fuga para a fantasia religiosa como substituto ideológico das identidades coletivas formadas no contexto da modernização das sociedades tradicionais.3 Diante da crise social crescente, o Estado pôde oferecer apenas uma pequena renda emergencial como simulação do consumo em massa – o que, em si mesmo, revela o fracasso da integração social pelo trabalho -, mas que ainda estava associada a ilusões de desenvolvimento e integração precária pelo consumo. Mesmo contra a pregação ideológica dos seus apoiadores na “classe média”, o governo Bolsonaro deu prosseguimento à gestão da crise por meio dos programas sociais de mercado, mas sem qualquer roupagem ideológica adicional e, por assim dizer, como um último recurso. Já não se fala em inclusão na “sociedade de classe média”, nem da salvação do capitalismo pelo consumo dos pobres. Isso, no entanto, não significa que o governo e sua base militante tenham se rendido a uma postura pragmática. Pelo contrário: sua aliança com as correntes fundamentalistas indica uma segunda via de radicalização ideológica baseada na “comunidade de valores”, que a seu modo também se volta contra o Estado.4 É claro que a maior parte da população de baixa renda aceita as políticas sociais de mercado da Era Lula, mas, por outro lado, vê na agenda “cultural” do PT uma ameaça aos valores do seu meio familiar e social.5

Ainda que esses movimentos tenham sido exitosos na produção de novas formas de organização à margem da política, contra a qual travam uma guerra cultural, eles também se tornaram ativos na esfera pública oficial, com a qual mantém uma relação instrumental. Não por acaso, a pastora Damares Alves, ministra “da família”, afirmou que “é o momento de a Igreja ocupar a nação… e governar”. Ou, no dizer de outra liderança evangélica: “Nós estamos indo para a política brasileira e as portas do inferno não prevalecerão contra a igreja do Senhor”.Por meio da aliança com o meio evangélico popular também foi “preenchida” a ausência de uma construção ideológica coerente nos círculos “bolsonaristas”.6 É a partir dessa radicalização ideológica que vicejam o obscurantismo, as teorias conspiratórias e as ideias de “seleção natural” pelo mercado. O discurso de Bolsonaro tornou-se, assim, uma forma regressiva de “antipolítica” que mobiliza a raiva dos estrados médios contra a “interferência” do Estado e as identidades coletivas da periferia constituídas pelo discurso religioso.

A antiga polarização eleitoral no interior do sistema político dá lugar então a outra polarização: de um lado, instituições e partidos “oficiais”; do outro lado, o populismo de direita que paralisa a esfera política. Se no radicalismo de mercado e no ativismo dos chamados evangélicos encontramos uma lógica de exclusão ou novas formas de mediação social para além da política, a crise da “generalidade abstrata” estatal ganha uma forma ainda mais evidente com a fragmentação do aparato de violência. Aqui não se trata das ideias desconexas e cambiáveis que o “bolsonarismo” dirige aos grandes segmentos da população e sim do processo por meio do qual os próprios atores na esfera pública (como integrantes do aparato de violência) passam a exprimir interesses privados e concorrentes entre si, encaixando-se cada vez menos no ponto de vista do Estado, que começa, portanto, a ser corroído também a partir do seu interior. Isso diz respeito ao conjunto de ações – legais ou informais – que tornam flexível o uso da violência, desde os projetos de armamento da população ou do “excludente de ilicitude” até a formação de grupos paramilitares de agentes e ex-agentes de segurança pública que atuam por conta própria – ainda que na maior parte dos casos esse processo de corrosão seja acompanhado de medidas legais que reforçam caráter repressivo do Estado. A partir daí tem início a autonomização do aparato de violência em relação a qualquer controle político ou “civil”. O processo de asselvajamento das relações se manifesta de modo diferenciado, conforme os níveis de estratificação: nos meios de “classe média”, já marcados pelas tendências de individualização e de queda, ele prolifera como uma versão especialmente violenta da desregulação neoliberal e como gesto vazio de autoafirmação do sujeito isolado contra o “poder do Estado”. A iniciativa individual assume então uma forma ainda mais selvagem na qual os indivíduos socializados diretamente pela concorrência já se preparam com armas na mão para os próximos estágios da crise.7 Nas periferias e favelas, por sua vez, constitui-se um modelo informal de regulação armada, que funciona como uma “guerra particular” entre facções pelo controle da economia secundária do tráfico e expõe um quadro já quase inteiramente fora do alcance da ordem estatal. Em ambos os casos, mas de modo diferente, a crise da mediação política explode em novos surtos de violência racista e sexista.

Longe dos grandes centros urbanos a lógica da violência informal também floresce na pilhagem da “última fronteira” interna, com as formas ilegais de ocupação de terras e extrativismo. Para o espanto da parcela da “classe média” que ainda vê no Estado a defesa do conjunto dos interesses privados, Bolsonaro levou para dentro do governo a “guerra particular” de agentes privados ilegais contra facções rivais ou contra movimentos sociais e povos tradicionais. Assim, fica à vista de todo o país que suas periferias e rincões já estão quase totalmente desconectadas da normalidade política e econômica – é provável que Bolsonaro se torne inadmissível para uma parte da nova direita de “classe média” e amante das “instituições democráticas” devido ao caráter demasiado explicito dessa “revelação” e não tanto pelo seu conteúdo real.

A convergência inicial de Bolsonaro com a chamada nova direita oriunda dos estratos médios mostra que a autonomização do aparato de violência militarizado e a luta entre facções no interior do estamento burocrático são duas faces da mesma moeda.8 Essa frágil aliança se desfez assim que as promessas de “retomada” se mostraram ilusórias e ficou patente a incapacidade do governo de lidar com a gestão das crises econômica e da saúde. Desde então, veio à tona a ligação pessoal do clã Bolsonaro com as milícias cariocas e suas ramificações no restante do país. Essa relação não é casual. A falta de um acordo orgânico com as elites empresariais aproxima Bolsonaro a um tipo de agente econômico secundário com maior tendência para os negócios clandestinos. Outro apoio vem do grupo de militares incorporados ao governo, ainda que, nesse caso, não faltem contradições entre a ideologia intervencionista e o extremismo de mercado que dá o tom no governo. Notícias sobre a ligação da família do presidente com o submundo do crime organizado são outro fator que tende a colocar em xeque o apoio aberto das Forças Armadas ao governo, ainda que elas próprias tenham se mostrado permeáveis à ação de esquemas ilegais (desvio de armas em quartéis, tráfico de drogas etc.) e que as frequentes operações do Exército na segurança no Rio de Janeiro tenham ignorado as áreas dominadas pelas milícias. Mas as investidas de Bolsonaro contra os demais poderes parecem apenas antecipar tendências de fragmentação ainda não suficientemente amadurecidas no meio militar. É no aparato policial, no entanto, que o clã Bolsonaro angariou forte adesão, o que resulta imediatamente em ações mais autônomas e violentas. Esse mesmo aparato que foge dos controles políticos tradicionais é a principal fonte da estrutura mafiosa que desafia o princípio do monopólio estatal da violência e impõe sua regulação armada nas periferias. O que parece ser um desvio atípico do curso normal da democratização é, de fato, a tendência geral de declínio após o esgotamento do processo de modernização. O aparelho estatal não pode atravessar as ondas de crise como uma unidade homogênea. Daí a impossibilidade de que os novos polos de violência informal produzam algum tipo de ordenamento geral, como ainda era o caso nas antigas ditaduras modernizadoras na América Latina. A tendência desse conflito, pelo contrário, aponta para a ruptura da coesão social.9

O fracasso da integração na sociedade do trabalho – e, em consequência, a crise da política – devem exigir cada vez mais medidas de emergência contra os excluídos.10 E mesmo com um programa geral de desmonte e de repressão, o governo não pode simplesmente avançar na direção do esvaziamento da administração da crise que vigorou nas últimas décadas.11 Esse quadro de tensão crescente nos coloca diante de algumas alternativas. É possível que o clã Bolsonaro e seus apoiadores nos círculos militares e na polícia usem a crise social que se avoluma para avançar com um golpe contra a classe política e suas instituições, o que resultaria em uma simulação profundamente disfuncional de “ordenamento”. Para isso, contudo, faltam bases sociais e apoio econômico. A alternativa inversa, e mais provável, é que se produza na classe política e no empresariado – também com a ajuda de pressões externas – um novo consenso de que é preciso afastar Bolsonaro e o setor militar que ocupou o governo. Essa posição já é francamente majoritária no conjunto da sociedade e poderia apenas adiar uma inevitável implosão do sistema político. Uma terceira possibilidade é que Bolsonaro seja contido pelas instituições política e legislativa, num acordo que o livre de investigações, e no qual o aparato de repressão e de justiça se voltaria contra os alvos habituais como partidos e movimentos de esquerda. Faz parte desse acordo tácito o aprofundamento das reformas e o reforço dos programas de renda mínima. Em uma situação como essa, até mesmo as milícias poderiam ser admitidas como uma solução parcialmente institucionalizada para o caos nas periferias.12 Cada uma dessas alternativas depende, é claro, da correlação de forças nas disputas em torno dos cada vez mais limitados projetos de poder e, principalmente, do estado da crise social, que a qualquer momento pode produzir mudanças bruscas. Em todo caso, nenhuma delas oferece uma alternativa real à crise da integração social e da forma política.

Há de se perguntar qual o papel da esquerda no contexto de uma crise sistêmica que torna a política inviável como instância de mediação social, já que o “ser de esquerda” não conhece nada fora da política. Por todo lado, a frustração das massas com a política é explorada primeiramente pela direita radical – seja ela “velha” ou “nova” – e pelas seitas da salvação: “É verdade que o terreno ‘pós-político’ é um terreno perigoso e hoje quase exclusivamente ocupado de modo racista e fundamentalista, mas uma crítica emancipatória do sistema em confronto com a nova barbárie terá de passar por esse terreno”.13 Também aqui Bolsonaro personificou as tendências de brutalização contidas na incapacidade crescente da política em lidar com as contradições sociais e, ao mesmo tempo, a emergência dos novos fatores pós-políticos de perturbação do espaço funcional da regulação estatal. A oposição efetiva ao avanço do bolsonarismo permanece apenas nas esferas internas ao sistema, seja nas tensões ainda fortes entre o modo de vida individualizado de “classe média” e o avanço do fundamentalismo de base popular, na oposição de setores militares ao extremismo de mercado ou na inércia do próprio sistema político e jurídico. A esquerda pragmática e realista substituiu todos os meios de mobilização por políticas de governo e uma vez na oposição dispõe de poucos meios práticos para chegar às massas populares. Mesmos as políticas sociais de mercado podem facilmente virar-se contra ela. Essa esquerda figura hoje como retaguarda de um sistema em desagregação que criminaliza as respostas desesperadas à crise social. Os “antifascistas”, por sua vez, ainda gostaria de ver no quadro atual o renascimento da política, para se colocarem novamente no centro dos conflitos sociais. Em seu suposto radicalismo, eles travam uma “luta de classes” puramente imaginária, que pressupõe um sujeito coletivo imediatamente dado e que pode produzir a qualquer momento um “acontecimento”. Embora lutem contra novos identitarismos e reafirmem a assim chamada consciência de classe, o próprio pertencimento de classe permanece socialmente indefinido e se assemelha a uma cultura puramente identitária de nichos. Sua histórica “ênfase na política” em uma era de impotência da política só pode levar, igualmente, à impotência da prática social emancipatória como um todo. É por isso que as iniciativas “contra o sistema” e de construção dos meios de ação junto aos mais afetados pela crise permanecem um monopólio dos radicais de direita.

1 Marcos Barreira e Maurilio Lima Botelho, A implosão do “pacto social” brasileiro. Blog Junho, Maio/2016.

2 Essa negação da dimensão sistêmica da crise foi, aliás, um traço recorrente do discurso econômico-midiático desde 2009, quando as medidas “anticíclicas” eram denunciadas como uma peculiaridade nacional puramente ideológica (isto é, “estatista”) numa suposta conjuntura global de retomada. Se a esquerda pelo menos era capaz de enxergar a crise a partir de um quadro não exclusivamente nacional ou “político”, a própria noção de medidas “anticíclicas”, no entanto, revela que, também aqui a sua dimensão sistêmica foi apagada. Não surpreende, portanto, que, depois de 2015, a esquerda tenha atribuído o agravamento da crise à ruptura com as medidas econômica dos “seus” governos.

3 Sobre este ponto ver, Ernst Lohoff, Die Exhumierung Gottes. Von der heiligen Nation zum globalen Himmelreich. Disponível em https://www.krisis.org/2008/die-exhumierung-gottes/.

4 “A exigência de que todos os seres humanos só possam referir-se diretamente a Deus e já não a qualquer outra autoridade é, ao mesmo tempo, consequência e parte do desmonte da generalidade abstrata do Estado”. Ibidem.

5 Sobre isso ver Marcos Barreira, À beira do abismo. Blog da Boitempo, 10/2018.

6 O fundamentalismo, no entanto, avança igualmente nos estratos médios, enquanto a mentalidade individualizada típica das ideologias de “classe média” ganha força junto à população pobre que ascendeu socialmente na Era Lula. Essas tendências estão apenas no início. Conforme o movimento evangélico ganha as camadas médias, cresce a identificação deste com o radicalismo de mercado e a ideia de que o governo é uma instância que apenas sobrecarrega a sociedade com impostos e contraria crenças e valores cristãos.

7 Esses sujeitos da concorrência sonham com uma existência individual “livre” da regulação política apenas para que possam adaptar-se aos novos imperativos da concorrência. A motivação para os seus interesses privados não está mais nos grandes ou pequenos empreendimentos que “movem o mundo”, mas apenas na sobrevivência em condições sempre mais destrutivas. Por isso, a sua forma de consciência se torna mais violenta, como no culto às armas de fogo e nas fantasias de extermínio dos “diferentes”.

8 Ambas as forças disputam a posição de crítica do “sistema” ou da “política”, mas a segunda só pode fazer isso por meio do próprio sistema, isto é, como representante das funções legais do Estado, enquanto a primeira se fia exclusivamente na sua base organizada e, sobretudo, na ameaça do uso da força.

9 Análises nesse sentido podem ser encontradas nas contribuições da “crítica do valor” para o fenômeno da nova direita na Europa, em especial o livro Rosemaries Babies. Die Demokratie und ihre Rechtsradikalen. Gruppe Krisis (org.), Horlemann, 1993. Ver também, Robert Kurz, “A democracia devora seus filhos”, Rio de Janeiro: Consequência, 2020.

10 Ver Maurilio Lima Botelho, Guerra aos “vagabundos”. Sobre os fundamentos sociais da militarização em curso. https://blogdaboitempo.com.br/2018/03/12/guerra-aos-vagabundos-sobre-os-fundamentos-sociais-da-militarizacao-em-curso/

11 Com metade da população ativa vivendo na informalidade ou no desemprego aberto, o Brasil conta ainda com uma população maior que a de países como Portugal, Bélgica ou Grécia sobrevivendo quase completamente desconectada do mercado de trabalho e do consumo de mercadorias.

12 Ver Marcos Barreira, Para além da ocupação do território. Revista Continentes, n. 2, jan. 2013.