31.12.2015 

Crítica do trabalho e emancipação social

Norbert Trenkle

Publicado em alemão em 2004 Deutsche Version Version française

 

Réplica às críticas ao Manifesto contra o trabalho

Publicado há cinco anos, o Manifesto contra o trabalho se destaca certamente das outras publicações da Krisis. Conforme seu caráter de panfleto, ele introduz no debate público, sob uma forma concisa e polêmica, as posições teóricas centrais desenvolvidas ao fio dos anos na revista. Isto não ocorreu sem algum sucesso. Nenhuma outra publicação da Krisis teve, e isto para além do mundo de língua germânica, tanta ressonância e, igualmente, tantas críticas.

A este propósito, é impressionante constatar que, a despeito das particularidades próprias aos diferentes países e dos diferentes discursos da esquerda, as críticas largamente se superpõem. A crítica formulada no Manifesto parece tocar, portanto, em alguma coisa de comum a todos esses discursos, algo como um fundamento comum de tal modo evidente que já não é normalmente nem mesmo percebida8.

Desse ponto de vista, as quatro críticas feitas ao Manifesto – aquelas de Jaime Semprun, de Charles Reeve, de Luca Santini e das Edições Rouge e Noir (doravante como ERN) – e republicadas no último número da Krisis podem ser consideradas como exemplares. Tão diferente que sejam seus pontos de partida, eles se movem em torno das mesmas interrogações e se focalizam sobre os mesmos pontos.[1] Por isso, o presente texto se reveste de um caráter mais geral do que o de uma resposta direta a essas quatro críticas.

Nada de novo sob o sol?

Por mais que a polêmica contra o trabalho como princípio de coerção social encontre forte apelo espontâneo (principalmente nas pessoas que se situam fora do discurso de esquerda), em geral há uma forte resistência quando se trata da crítica aos fundamentos do trabalho e suas implicações. Os ataques vão geralmente em duas direções. De um lado, fazem-nos a censura que a crítica do trabalho não teria nada de novo, pois existiria na história da esquerda toda uma tradição que, conforme o ponto de vista adotado, vai do anarquismo e de Paul Lafargue aos operaístas italianos, passando pelos situacionistas. Quanto a nós, passaríamos todas essas tentativas sob silêncio ou não as mencionaríamos senão passando por cima, como se fôssemos os únicos nesse domínio. Charles Reeve, por exemplo, escreve: “no que concerne à crítica do reformismo moderno, Krisis repete – com um gosto pronunciado pela presunção – o que já foi escrito. Lendo-os parece que a crítica do capitalismo contemporâneo teria começado no dia em que se puseram a pensar” (l’Oiseau-tempête nº 10, p. 4). Essa censura, e outras no mesmo sentido, vem acompanhada geralmente do argumento segundo o qual nossa crítica do capitalismo não iria suficientemente longe, ou mesmo recairia na tradição acima mencionada. Pois ela negligenciaria, como o escreve Santini, a suposta “determinação essencial do trabalho nos quadros do capitalismo”, ou seja, “o momento da criação e da extorsão da mais-valia”. (Appunti su il Manifesto contro il lavoro, INFOXOA 016, Roma, 2003, retraduzido conforme a tradução alemã publicada pela Krisis).

Nós não temos evidentemente a pretensão de crer que teríamos desenvolvido nossa crítica do trabalho ex nihilo, num vazio histórico. Mesmo que o movimento operário tenha sido fundamentalmente um movimento pelo reconhecimento da mercadoria força de trabalho e tenha contribuído em larga medida para totalizar o trabalho como princípio social e, isso não significa que ele se limitou a aceitar os constrangimentos do processo de trabalho capitalista. A crítica do regime de comando e de tutela pelo trabalho é largamente dominante até no mainstream de esquerda tradicional. Mas o ponto de vista a partir do qual essas críticas foram feitas foi sempre o do trabalho. O que quer dizer que, explícita ou implicitamente, o trabalho era considerado uma categoria trans-histórica não subordinada ao capital a não ser de maneira mais ou menos exterior e, portanto, em sua “essência” não pertence ao capitalismo. Sobre esse ponto, malgrado todas as suas diferenças, as correntes radicais encontraram-se em acordo com o mainstream. Isso vale igualmente para as correntes críticas do “marxismo ocidental”, de Lukács aos situacionistas, passando pela Escola de Frankfurt e alguns de seus sucessores – mesmo se, pela sua referência à crítica marxiana da forma-valor e da forma-mercadoria, eles tenham feito explodir a perspectiva estreita do marxismo ortodoxo dos partidos, abrindo caminho para uma crítica do capitalismo como forma totalizante de socialização. Lukács, por exemplo, onde a teleologia de uma metafísica da história do marxismo tradicional encontrou sua mais alta expressão teórica, transfigurou explicitamente o ponto de vista do trabalho em alavanca de superação do capitalismo e descreveu o proletariado, o representante social desse ponto de vista, como a “essência enquanto sujeito-objeto idêntico do processo evolutivo da sociedade e da história” (Lukács, 1988, p. 189).[2]

As censuras segundo as quais nossa crítica do trabalho não teria fundamentalmente nada de novo, que, mais ainda, seria “reduzida” (Santini) ou seria simplesmente “moralizante” (Reeve), resultam do fato de que os críticos pressupõem esse quadro teórico do marxismo tradicional de tal modo evidente e, por isso, eles não podem ou não querem compreender, mas, ao contrário, tentam colocar o Manifesto à força em seus marcos de referência. Isso não ocorre sem contorções argumentativas que mesmo uma leitura superficial do texto basta para refutar. Assim Charles Reeve, por exemplo, afirma que, no Manifesto, “jamais esse vetor-trabalho é definido como relação social e histórica, nem caracterizado especificamente como trabalho alienado, assalariado” (ibid.). A primeira parte dessa afirmação é manifestamente absurda, pois pertence às posições centrais do Manifesto que o trabalho é o princípio de socialização historicamente específico do capitalismo. Quanto à segunda parte da frase, ela mostra, com evidência, que Reeve não sabe realmente o que fazer com essa mesma posição. O que ele entende por “relação social” é a subordinação da pressuposta categoria do trabalho ao “capital”. A Alienação do trabalho significa aqui, portanto, que é a “essência” do trabalho, a qual seria “em si” exterior ao capitalismo, que se encontra alienada. Essa alienação resulta da coerção de produzir “mercadorias para outros (os capitalistas) (ibid. nota 4). A “crítica do trabalho” feita a partir de tais premissas se reduz fundamentalmente a uma crítica da exploração. O fato de não colocarmos a extração de mais-valia no centro da crítica é interpretado por Reeve no sentido de que nós simplesmente não a enxergamos: “Na Krisis, a noção de lucro é ausente, o conceito de exploração conta pouco, visto que a maquina capitalista não tem outra finalidade que não ela mesma” (ibid.). O modo pelo qual Reeve se esforça em ler o texto ao revés de seu significado não deixa, assim mesmo, de surpreender. Em que consiste então o caráter de fim-em-si da maquina capitalista senão na valorização do valor? É evidente que as categorias de mais-valia e lucro não são “irrelevantes”, mas é preciso compreendê-las como categorias derivadas da lógica de “fim-em-si” do capital e do trabalho, que forma essas categorias e nas quais se manifesta sua identidade fundamental

Não se trata unicamente da idéia de que o trabalho é um princípio imanente ao capitalismo e de modo algum uma categoria trans-histórica. O mais importante é que se trata do princípio central de coerção e socialização da sociedade da mercadoria, que constitui uma forma específica de dominação impessoal e tornada autônoma que Marx designa pelo conceito de fetichismo. Para os indivíduos, essa dominação se traduz primeira e imediatamente por essa coação fundamental, que consiste em transformar, de uma maneira ou outra, sua energia vital em “trabalho” para sobreviver, seja vendendo-se como “força de trabalho” contra um salário, seja produzindo e lançando quaisquer mercadorias sobre o mercado (produtos materiais ou serviços) nas quais seu tempo de trabalho está “representado” sob forma reificada. Isso significa que, na sociedade da mercadoria, as pessoas relacionam-se entre si e com o conjunto da sociedade por intermédio do trabalho ou, mais precisamente, pelo dispêndio de sua força de trabalho. Essa mediação não se efetua por meio dos conteúdos específicos das diferentes atividades, por conseguinte não por meio do aspecto concreto do trabalho e das mercadorias produzidas. Ao contrário, ela faz abstração desses conteúdos. O que conta não é o que se produz nem como e em quais condições, mas somente que força de trabalho seja despendida na produção de mercadorias.

Portanto, os conteúdos dos diferentes trabalhos são colocados sob um mesmo denominador e igualados um ao outro; eles contam apenas como diferentes formas de representação do “trabalho abstrato”. As diferenças materiais e qualitativas das atividades e dos objetos produzidos encontram-se apagadas nessa relação. Dessa perspectiva, a montagem de um motor e os cuidados com um doente numa clínica são idênticos, pois as duas atividades são reduzidas a dispêndio de energia vital sob forma de trabalho. Elas contam como porções determinadas de tempo de trabalho abstrato gasto e, medidas pelo tempo de trabalho, representam algum “valor”. “O que torna o trabalho geral sob o capitalismo não é simplesmente a obviedade segundo a qual o trabalho seria o denominador comum dos diferentes tipos específicos de trabalho, mas a função social que desempenha. Como atividade de mediação social, o trabalho faz abstração da especificidade de seu produto e, portanto, da especificidade de sua própria forma concreta. Na análise de Marx, a categoria trabalho abstrato expressa esse processo real de abstração; ela não se funda sobre um simples processo de abstração conceitual. O trabalho é trabalho em geral enquanto prática que constitui uma mediação social. Mais ainda, estamos tratando de uma sociedade na qual a forma-mercadoria se encontra generalizada e, por tanto, é socialmente determinante: o trabalho de todos os produtores serve de meio para poder obter os produtos dos demais. Por conseqüência, o ‘trabalho em geral’ funciona de maneira socialmente generalizada como atividade de mediação” (Postone 2003, p. 151-152).

Essa forma de mediação social completamente particular e historicamente específica está intimamente ligada à produção de mercadorias como sistema social. Pois o absurdo que consiste, por assim dizer, em congelar a atividade viva numa categoria social reificada, ou seja, representá-la sob forma de “trabalho morto” ou “valor”, requer um suporte material: a mercadoria. No entanto, esta não funciona como mero objeto de troca, produzida para comprar outro valor de uso. Certamente, os indivíduos realizam, mediante a venda de sua força de trabalho para a compra de bens de consumo, um simples circuito mercadoria-dinheiro-mercadoria. Mas esse ciclo de venda e compra está num determinado contexto e ao serviço de um “fim superior” que o antecede: o fazer do dinheiro mais dinheiro, quer dizer, a valorização do valor. Cada mercadoria particular não é senão um meio para realizar esse fim. Cada mercadoria funciona antes de tudo como suporte e representante do valor que, em última instância, deve se representar ainda e sempre como dinheiro. Sua face concreta, o valor de uso, é apenas o subproduto dessa função, uma característica material inoportuna sem a qual, infelizmente, a venda não pode ser feita (o que, aliás, é visto na maioria das mercadorias).

Mas como o valor não representa outra coisa que “trabalho morto”, a acumulação do capital não é exterior ao trabalho: ela é, ao contrário, inerente ao caráter desse último como princípio de mediação e coerção social-geral. A acumulação do capital não é senão a necessidade permanente de despender trabalho vivo a fim de acrescentar sempre mais “trabalho morto” ao “trabalho morto” acumulado. Como, dessa maneira, o trabalho abstrato não possui outro objeto a não ser ele mesmo, pode-se dizer que o consumo de trabalho constitui um movimento de mediação auto-referente, tautológico e autônomo. Trata-se de uma mediação social que, por natureza, é independente da vontade humana, que faz face aos homens como uma potência aparentemente exterior e impõe-lhes suas leis coercitivas, embora se trate apenas da forma de suas próprias relações sociais. Dizendo-o com Marx: “É somente a relação social determinada dos homens entre si que toma aqui para eles a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. (…) Eu chamo isso o fetichismo, fetichismo que adere aos produtos do trabalho desde o momento em que são produzidos como mercadorias, e que, contudo, é inseparável da produção de mercadorias” (Marx 1983, S. 86f).

A partir dessa perspectiva, a crítica do trabalho é formada por muito mais que a crítica de uma forma determinada de atividade e dos diversos constrangimentos impostos pelo processo de trabalho e produção capitalistas, tais como o regime de comando ou a extorsão da mais-valia. Ela significa a crítica do princípio de coerção e mediação constitutivo do capitalismo, princípio intimamente ligado às formas fetichistas que são a mercadoria e o valor. Ela significa o adeus a toda referência positiva ao “ponto de vista do trabalho”, ainda que modernizada e diluída e, portanto, uma mudança de perspectiva radical na crítica do capitalismo.

O agir instrumental

De modo similar a Reeve, Santini não chega a compreender essa mudança de perspectiva quando escreve na passagem citada mais acima: “Os autores do grupo Krisis não compreendem o momento decisivo sobre o qual repousa a aliança oculta do capital e do trabalho; bem mais, eles obscurecem o momento da criação e da extorsão da mais-valia, ou seja, o processo graças ao qual o trabalho cria os valores que o capital se apropria” (ibid.). Já nela própria esta afirmação não é exata, visto que a “extorsão da mais-valia” designa o conflito de interesses imanente e não a “aliança” entre trabalho e capital. Mesmo se os interesses opostos não tenham, por si, gerado ruptura, mas representem um momento interno da forma de desenvolvimento da sociedade da mercadoria, de modo algum eles próprios constituem a identidade entre capital e trabalho, mas antes pressupõe o contrário. Quando Santini restringe seu campo de visão à exploração, é precisamente esse nível pressuposto da constituição da sociedade que lhe escapa, o campo de referência comum ao qual se referem o capital e ao trabalho, onde também se desenvolve o conflito de interesses. Implicitamente, Santini pressupõe portanto, ele também, o trabalho como categoria ontológica e trans-histórica que não entra em relação com o capital senão porque este o subjuga e o explora. Portanto, segundo o entendimento de Santini, essas categorias são em si estranhas e não geram de modo algum uma relação social comum.

Não surpreende portanto que Santini não saiba como lidar com a tese de identidade constitutiva de trabalho e capital e não chegue a se explicar [ou explicá-la?] a não ser externamente: “os autores associam capital e trabalho numa mesma crítica porque, finalmente, um e outro agem de maneira instrumental, sem se preocupar com objetivos concretos e fins materiais que encerram a atividade produtiva” (ibid.). Pode-se evidentemente determinar o trabalho também como atividade instrumental, mas nós não sustentamos que esta seja a base da identidade do capital e do trabalho. Essa determinação aparece antes como um dos aspectos contidos no caráter do trabalho enquanto princípio social auto-referencial de mediação e de movimento da sociedade produtora de mercadorias. A indiferença a todo fim particular consiste fundamentalmente numa indiferença do movimento de valorização em face do valor de uso das mercadorias, que representa, para ele, apenas um incômodo acessório. “A produção de mais-valia é portanto uma produção na qual o próprio fim é um meio. Sob o capitalismo, a produção se faz portanto necessariamente segundo critérios quantitativos, visando uma massa crescente de mais-valia.  Essa é a base da análise de Marx da produção no capitalismo como produção pela produção. Aqui, a instrumentalização do mundo é dada em função da determinação da produção e das relações sociais por essa forma historicamente específica de mediação social e não em função da complexidade crescente da produção material enquanto tal. A produção pela produção significa que a produção não é mais o meio para alcançar um fim substancial, mas o meio para alcançar um fim que é ele-mesmo um meio, um momento no interior de uma cadeia de expansão infinita. Sob o capitalismo, a produção torna-se meio para alcançar um meio” (Postone 2003, p. 181). Também para os trabalhadores a relação instrumental com sua atividade resulta do caráter específico do trabalho produtor de mercadorias. Para eles, o trabalho não é senão um meio em vista de um fim, que é participar da riqueza mercantil do conjunto da sociedade e, portanto, de se mediatizarde um modo específico com seu próprio contexto social. E é aí que reside a abstração do conteúdo particular de cada uma de suas atividades. O que interessará aos produtores em seu trabalho é o valor de troca que lhes permite adquirir outras mercadorias. O valor de uso não conta nada no trabalho que produzem. Nesse sentido, eles se comportam em face do conteúdo concreto de seu trabalho com a mesma indiferença e de um modo tão instrumental quanto o movimento de valorização enquanto tal.

O quadro no qual se inscreve a crítica do agir instrumental está longe de ser secundário. Demonstra-o bem a referência à Teoria Crítica, na tradição na qual Santini inclui o Manifesto, quando escreve que nossa crítica do trabalho pertence “sem dúvida alguma ao estilo da Escola de Frankfurt” (ibid.). Que devemos muito à Teoria Crítica é algo que não pode ser negado, mas não se deve perder de vista que a crítica do agir instrumental, em particular aquela desenvolveu Horkheimer, recorre explicitamente a uma noção trans-histórica do trabalho entendido em seu sentido mais amplo como “transformação da natureza”. Trata-se então de uma perspectiva completamente diferente da nossa. A instrumentalidade é aqui uma característica que não se pode separar da relação com a natureza e da atividade do Homem, um tipo de destino ontológico de hominização que, por essa mesma razão, não poderia ser abolido (Trenkle, 2002). Suas origens estariam de certo modo lá onde os humanos começaram a se servir de instrumentos de pedra. Em Horkheimer, o caráter fundamentalmente instrumental da sociedade procede portanto não de sua formação capitalista, mas da complexidade crescente da produção material e do desenvolvimento de métodos industriais de produção.[3] Esta concepção (que se apoia em Max Weber) contém um liame interno evidente com a noção ontológica do trabalho do marxismo tradicional. Mas ao passo que para o marxismo tradicional o trabalho, considerado como pretenso princípio não-capitalista, encarnava a razão e, portanto, era uma alavanca para a superação do capitalismo, Horkheimer contenta-se em adotar a perspectiva oposta. Ele não supera o ‘ponto de vista do trabalho’, mas apenas o inverte em seu contrário pessimista. Ele não vê mais esperança quanto à abolição da instrumentalidade da relação com o mundo. É o que Moishe Postone chama com razão de “pessimismo crítico” (2003, p. 104 e seguintes).

Capitalismo ou sociedade industrial?

É uma posição estruturalmente próxima desse “pessimismo crítico” que exprime Jaime Semprun quando acusa o Manifesto de permanecer enraizada no fetichismo das forças produtivas do antigo movimento operário, por lhe opor uma crítica da sociedade centrada na crítica da tecnologia moderna: “A contradição fatal da sociedade da mercadoria (mas talvez também da civilização, nas possibilidades de humanização que esta produziu ao longo da história) é a que existe entre os meios de produção determinados, ou seja, o ‘capital fixo cientificizado”, a tecnologia moderna, de um lado, e de outro lado as necessidades vitais de apropriação da natureza, às quais nenhuma sociedade humana poderia se subtrair” (Jaime Semprun. “Notes sur le Manifeste contre le travail” em Nouvelles de nulle part n° 4, Paris, 2003). Mesmo que Semprun fale aqui e acolá de “sociedade da mercadoria” e de “capitalismo”, sua análise não aborda em lugar algum a forma social específica do capitalismo e suas contradições internas. No fundo, essas noções são utilizadas como sinônimos de “sociedade industrial”. A origem das impertinências, devastações e catástrofes da modernidade não é procurada na dinâmica autonomizada da mercadoria, do valor e do trabalho, mas diretamente atribuída à tecnologia moderna. Capitalismo = sociedade industrial, tal é a simples equação estabelecida por Semprun. Também a abolição do capitalismo é para ele sinônimo de supressão da tecnologia moderna e da produção industrial em sua totalidade.

Agora, não se deve negar, certamente, que a produção industrial moderna tenha nascido ao mesmo tempo em que a socialização capitalista e que sua estrutura mesma seja intrinsecamente capitalista. Nesse sentido, pode-se dizer até mesmo que a sociedade da mercadoria é a única sociedade na história da humanidade a merecer o nome de “sociedade industrial”, e, por conseguinte, a crítica do capitalismo deve englobar uma crítica do modo de produção industrial.

Mas apresentar os dois conceitos como sinônimos é um erro, pois se o capitalismo deu origem e forma à produção industrial, não se poderia reduzir aquilo a isto uma coisa à outra. Por isso que é possível demonstrar na produção industrial o movimento autônomo fetichista, os mecanismos de dominação e as contradições internas do sistema de produção de mercadorias, mas não se pode explicar o capitalismo pela produção industrial. E é também por isso que a superação do capitalismo não significa a abolição da produção industrial simplesmente, mas sua transformação profunda. No entanto, é um erro apresentar ambos os conceitos como simples sinônimos, pois mesmo que o capitalismo tenha gerado a produção industrial e a tenha formado à sua imagem, não se reduz a esta. Isso porque a produção industrial permite mostrar o movimento autônomo fetichista, os mecanismos de dominação e as contradições internas do sistema produtor de mercadorias, mas não é capaz de explicá-los. E por isso a supressão do capitalismo não significa a abolição de toda produção industrial, mas a sua transformação fundamental.

O liame íntimo entre modo de produção capitalista e produção industrial vem do fato, amplamente demonstrado por Marx em O Capital, de que é somente nesta que a relação-capital pôde se realizar pela primeira vez como totalidade social. Uma formação social mediada pelo dispêndio de trabalho abstrato e entregue à coação cega da acumulação infinita de quantidades de valor abstrato tende necessariamente ao desenvolvimento de métodos que reproduzam essa coação em escala sempre ampliada. No centro desse processo se encontra o crescimento permanente da produção pela produção sob a forma de uma emissão crescente de mercadorias que representam “trabalho morto”. Além disso, a produção deve satisfazer o critério de “eficácia”, o que, em última análise, não significa outra coisa que “eficácia de tempo”. Dessa forma, a parte da jornada de trabalho deve ser alargada, durante a qual a força de trabalho cria mais-valia, ou seja, essa parte de valor criado além do custo de reprodução ou de vida da força de trabalho e que serve à acumulação de capital. Sabe-se que Marx fala a esse propósito de uma “produção de mais-valia relativa”, que se torna possível pela aplicação sistemática da ciência na produção (a “grande maquinaria”) e pela racionalização do processo de produção que a acompanha. Também se pode dizer que o capital criou um modo de produção à sua imagem na indústria moderna: é aí que nele se materializa e se concretiza a “abstração real” do valor. Ele se opõe aos seres humanos encarnado de modo tangível em aparatos concretos e estruturas de organização e lhes impõe sua racionalidade inerente e seu ritmo. E isso não é tudo. Na medida em que a sociedade da mercadoria se estabelece como totalidade, a lógica da “racionalização” se estende a todos os domínios sociais para modelar completamente a vida cotidiana, o pensamento e a ação dos homens modernos. Nesse sentido, Semprun tem razão em falar da “desertificação da vida” e de caracterizar a “habitações de massa” e as “cidades satélite” como células de subsistência. Mas ele se engana quando vê a origem imediata disso na “indústria” e nas forças produtivas modernas. Pois mesmo se as coações impostas pelo valor e pela mercadoria não se nos opõem a nós de maneira imediata enquanto tais, mas sob a forma de coisas e de estruturas sociais materiais, as primeiras não podem ser reduzidas às segundas. Ao contrário, essas coisas e estruturas não devem ficar isentas de crítica e ser tratadas como socialmente “neutras”; a crítica deve ter por objetivo analisá-las como representantes e materializações da lógica da mercadoria e do valor e demonstrar por meio delas como essa lógica é portadora da dominação repressiva e objetivada.

A identificação imediata de objetos materiais e forma social, no entanto, é em si uma expressão de um pensamento reificado, representando apenas a inversão abstrata do fetichismo das forças produtivas ao qual se agarrou o marxismo tradicional. Segundo esse último, o “desenvolvimento das forças produtivas” seria uma espécie de lei natural da história, um processo trans-histórico que o capitalismo, em sua “missão histórica”, teria gerado uma forte aceleração, mas sem alterá-lo de modo fundamental. Desse modo, as coerções da produção capitalista e do sistema industrial (estresse no trabalho, divisão extrema do trabalho, regime de comando, etc.) se relacionariam apenas externamente com as “relações de produção”, que, nessa visão restritiva, seria idêntico à dominação de classe, à exploração e à busca do lucro. Mas rejeitar essa interpretação mecanicista da contradição entre forças produtivas e relações de produção não significa declará-la obsoleta. Em vez disso, pode-se demonstrar que ela se traduz no próprio modo de produção industrial moderno, e isso de duas maneiras: como potencial de crise que se reproduz a uma escala sempre maior; por outro lado, o fato de que o desenvolvimento capitalista engendra certas possibilidades e potencialidades, ao mesmo tempo em que impede sua realização ou mesmo as transforma em forças destrutivas.

Isso não se aplica somente ao processo de produção mercantil enquanto tal, mas igualmente para seus produtos. Também o valor de uso da mercadoria não é um mero produto social com propriedades materiais neutras formado pelo valor de troca, mas a materialização do valor e de sua indiferença frente ao mundo. O tráfego de automóveis é um exemplo particularmente drástico disso. Enquanto sistema de deslocamento de uma sociedade cindida em indivíduos atomizados e constrangidos à mobilidade permanente, ele é, por sua estrutura material, uma imagem fiel da lógica do valor; não só por causa de seu papel de vanguarda na produção de catástrofes climáticas e na devastação do espaço público. A circulação de automóveis reflete de maneira paradigmática a relação associalmente social dos sujeitos burgueses, ao mesmo tempo massificados e isolados.

É evidente que um “programa de abolições” não visa “liberar” o “automóvel como valor de uso” de seu “invólucro-valor de troca”, mas suprimir o tráfego de automóveis como sistema social de deslocamento (sem excluir o uso de automóveis para fins muito específicos). O que, inversamente, não significa que uma sociedade libertada deva retornar aos carros-de-boi e às carroças. Será o caso antes de inventar sistemas de circulação que permitam a todas as pessoas andar por toda parte onde lhe der na telha de acordo com suas necessidades, sem destruir a natureza e as paisagens e sem ter que se transformar em uma mônada furiosa presa a uma caixa de lata. Quando Semprun pretende que o Manifesto cai “na crença de que o valor de uso e a técnica emancipatória podem ser reencontrados intactos logo que sejam libertos de sua forma capitalista” (ibid.), trata-se aí da pura projeção, que não encontra corroboração no texto. Semprun nos atribui essa posição do marxismo tradicional porque ela lhe permite apresentar seu próprio ponto de vista como o ápice da crítica radical; na verdade, ela representa somente um reflexo redutor.

É demasiado simplista opor uma recusa total ao entusiasmo cego frente à técnica e à ciência, da qual dava provas o marxismo tradicional (este conhece atualmente um renascimento com o neo-operaísmo de Hardt/Negri). Uma sociedade libertada deverá sempre examinar concretamente a tecnologia e a ciência que o capitalismo engendrou sob uma forma fetichista e largamente destrutiva para saber se, e em que medida, elas poderão ou não ser transformadas e desenvolvidas para o bem de todos.[4] É evidente que isso implica a decisão de não exaurir certas potencialidades da ciência (como os conhecimentos científicos sobre a manipulação genética) e de suspender uma parte importante da tecnologia capitalista (como os numerosos procedimentos da agricultura industrial) ou pelo menos utilizá-los muito seletivamente. Apresentar os critérios gerais a priori é impossível. Pois a libertação da dominação impessoal e fetichizada do valor significa que os membros da sociedade cessem de estar subsumidos a um princípio geral-abstrato pressuposto que estrutura suas decisões de uma maneira determinada e uniforme. Desse modo, eles poderiam decidir segundo diferentes critérios qualitativos, sensíveis e estéticos o que querem e o que não querem. A sociedade dominante, pelo contrário, é obrigada a racionalizar todos os setores, tanto ao nível tecnológico quanto organizacional. Ela não tem a escolha, pois está submetida ao diktat da economia e da compressão do tempo. Já uma sociedade de indivíduos livremente associados, que não se relacionem através da produção de mercadorias e da valorização do valor, mas através de procedimentos de comunicação direta, esta sim pode decidir conscientemente onde, por exemplo, é razoável utilizar robôs e outros processos de automação para suprimir ou reduzir atividades desagradáveis e onde isso não é desejável ou nocivo.

Semprum pode ver aí uma “incoerência”, mas esta reside na própria coisa. Quando ele reconhece no Manifesto, não sem alguma condescendência, que este recuaria aqui e acolá diante de sua própria visão tecnofetichista, que nele sentir-se-ia uma “espécie de hesitação”, ele conta com uma posição categórica que não pode existir senão quando se resolve a contradição entre forças produtivas e relações de produção de uma maneira totalmente unilateral, substituindo o princípio de coerção social dominante por outro princípio igualmente abstrato e geral: a supressão indiferenciada de toda produção industrial e de toda tecnologia moderna. Nesse sentido, a “radicalidade” de Semprum não é senão a inversão do rigorismo da sociedade burguesa, do qual é preciso se libertar.

O fim do trabalho?

Uma vez que Semprun ignora toda contradição entre forças produtivas e relações de produção, ele não pode reconhecer a dinâmica da crise que ela desencadeia nem, e principalmente, seu caráter explosivo. Para ele, não se poderia falar da crise do trabalho, pois a eliminação de partes inteiras da força de trabalho pela “inovação tecnológica” seria compensada pela reconstituição de muitas outras “atividades assalariadas” “socialmente necessárias”: “o cuidado psico-social das ‘multidões solitárias’, o controle policial da ‘barbarização’, a indústria da ‘saúde’ (…), do divertimento e das compensações ‘culturais’ à desertificação da vida, sem falar de tudo o que concerne a ‘reparação’, a bricolagem técnica de uma neo-natureza” (ibid.). Nenhum vestígio, portanto, de um trabalho que desaparece e se torna supérfluo.

Uma vez mais, Semprum confunde os níveis de argumentação. Sem dúvida a moderna sociedade da mercadoria (e não o “processo tecnológico” como tal) cria toda sorte de atividades sem outra finalidade que garantir o bom funcionamento da máquina de valorização, atividades que são necessárias apenas no interior da lógica desta sociedade. Além dos domínios evocados por Semprum, isso vale para uma grande parte da própria produção material de mercadorias, que reveste largamente de um caráter compensatório; o que é particularmente verdadeiro para o setor de circulação de mercadorias e dinheiro, da contabilidade ao marketing, passando pela redistribuição burocrática estatal. (ver detalhes em Valdivia, 1997; 2004). Mas mesmo que essas atividades, com a totalização do sistema social, compreendam uma parte relativamente cada vez maior do trabalho social total, isso não altera o fato de que elas sejam dependentes do funcionamento da valorização do capital. Ou seja, elas só podem ser efetuadas ou como produtoras de valor, contribuindo, portanto, para o aumento da massa de valor, ou então devem ser financiadas, absorvendo valor. É evidente que esses setores não são poupados nos enormes processos de racionalização que estão na base da crise global da valorização do capital. Como em toda parte, fecham-se as produções “não-rentáveis” e realizam-se cortes nas áreas financiadas pelo setor público, cujas decisões não são tomadas com base em critérios sensíveis e necessidades concretas, mas tão-somente em função da “vendabilidade” e da “financiabilidade”. Assim, por exemplo, os serviços de saúde deixam de ser fornecidos pelo Estado, enquanto, ao mesmo tempo, uma quantidade crescente de automóveis é lançada no mercado. Visto por outro ângulo, isso significa: enquanto alguns ainda podem vender sua força de trabalho e assim continuar a participar do consumo compensatório, na medida em que permite o seu poder de compra, uma quantidade cada vez maior de seres humanos são transformados em “supérfluos” e não mais se encontram em condições de satisfazer suas necessidades elementares. Jogar um aspecto contra o outro, como o faz Semprun, é passar completamente ao largo do assunto. Fazendo isso, ele ignora a tese central do Manifesto, a saber, que a profunda racionalização, na esteira da revolução microeletrônica, derrete a substância-trabalho, o que solapa os fundamentos da sociedade capitalista em seu conjunto. Isso acontece porque Semprun reduz o capitalismo à categoria unidimensional de “sociedade industrial”, a partir da qual não há lugar para a contradição interna entre forças produtivas e relações de produção e retira o solo de uma análise em termos da crítica econômica e da teoria das crises.

Mas outros críticos, como ERN e Santini, que questionam o diagnóstico da crise referindo-se explicitamente ao terreno da produção de mais-valia permanecem na superfície dos fenômenos e encontram-se até certo ponto no mesmo barco que Semprun. Assim, para Santini: “O desemprego não é um problema explosivo que vai dar fim à modernidade, pois, junto com a destruição de velhos tipos de trabalho, surgem outros novos e não cessam de aparecer novas possibilidades de extração de mais-valia” (op. cit.). Para apoiar sua tese, o autor refere-se expressamente ao crescimento da “economia informal” e do “amplo setor de trabalho voluntário” (ibid). ERN argumenta de maneira parecida e, de fato, afirma: “o posto de trabalho fixo e garantido por acordos coletivos tende efetivamente a desaparecer”, mas surgem outros instantaneamente. “Uma variedade de outras formas de trabalho assalariado ocupam o seu lugar: trabalho temporário, por contrato, por tempo parcial, auto-empreendedorismo, clandestinos etc.” (op. cit.). A fraqueza fundamental dessas críticas análises, comentários? é que elas não apreendem em seu conjunto, ou o fazem apenas superficialmente, a argumentação que está na base do diagnóstico da crise; elas lhe opõem de maneira mais ou menos incoerente constatações empíricas que parecem incontestáveis. Mas, procedendo assim, são enganados pelas manifestações contraditórias por meio das quais o processo de crise se impõe e se manifesta. A inconsistência fundamental desses comentários reside em que eles não apreendem, ou o fazem apenas superficialmente, a fundamentação teórica do diagnóstico da crise, mas contestam-no, com pouca ou nenhuma mediação, através de constatações empíricas aparentemente evidentes. Desse modo, porém, eles se apoiam nas formas contraditórias de manifestação que permeiam e mediam o processo de crise.

Uma dessas manifestações é que a forma do trabalho quase se universalizada, em consequência, no mundo inteiro cada vez mais pessoas são constrangidas a sobreviver vendendo de uma maneira ou outra sua força de trabalho, seja diretamente, seja por meio de mercadorias e serviços produzidos por eles mesmos. Isso se deve simplesmente ao fato de que a produção de mercadorias destruiu ou marginalizou todas as outras formas de reprodução social. Mas isso não diz nada sobre se esses trabalhos são produtores de valor, se e em que medida contribuem com a acumulação de capital. Quanto ao “trabalho voluntário” (e ao trabalho forçado estatal com o qual ele se cruza) citado por Santini, não é de qualquer modo o caso, pois aqui ele nem mesmo é remunerado. Em geral, essas atividades apenas substituem as atividades estatais ou públicas. É verdade que elas contribuem para o funcionamento do contexto global capitalista, embora este trabalho nem sequer seja financiado pelas cobranças sobre a massa de valor. Nesse sentido, seu argumento não se opõe ao diagnóstico da crise, mas, pelo contrário, diz respeito aos sintomas da crise.

O fato de não contribuir para o aumento da massa de valor e, portanto, para a acumulação do capital, vale igualmente para uma parte considerável do setor informal. Isso não é válido somente para o vasto domínio da auto-assistência, mas também para as inúmeras atividades que certamente são mediadas pela mercadoria e pelo dinheiro, mas servem apenas para a reprodução pessoal. Assim, o valor produzido por um engraxate ou uma empregada doméstica é consumido imediatamente na a valorização do capital. Isso é assim, aliás, independentemente do caráter “formal” ou “informal” das atividades. Nesse sentido, essa não é a característica decisiva. Todavia, o rápido crescimento da “informalidade”, não somente na periferia, mas também, e cada vez mais, no interior das metrópoles, demonstra o derretimento da substância do trabalho; ele indica que, numa grande parte do mundo, a criação de valor é tão pequena que não tem utilidade para a valorização do capital (através da mais-valia), nem para o funcionamento financiamento das funções estatais (através dos impostos) e nem mesmo para garantir o futuro pessoal (seguros e poupança). No máximo, ele pode ainda garantir a sobrevivência precária em níveis cada vez mais baixos. (Trenkle 1999)

Mas também a referência à massa de trabalhadores precarizados nas inúmeras pequenas fábricas clandestinas e sweatshops, maquiladoras e fábricas do mercado mundial (pouco importa se se encontram no setor formal ou informal), que, por sua natureza, são produtoras de valor, de modo algum refuta o diagnóstico da crise. Desse modo, simplesmente desaparece a questão do nível de produtividade desses trabalhos. E, no entanto, essa questão é central, pois, como se sabe, o valor de um produto não resulta simplesmente do tempo de trabalho imediato utilizado na sua fabricação, mas também do tempo de trabalho socialmente necessário. Este, por sua vez, é definido pelo nível de produtividade dominante, o que significa hoje: pelos padrões de produtividade em vigor nos setores chave do mercado mundial, setores racionalizados de ponta a ponta e altamente sofisticados em termos tecnológicos. É por sua medida que cada hora de trabalho no mundo deve ser mesurada; se essa hora de trabalho não atinge um determinado nível, então ela representa tanto menos valor. Isso nos remete a uma característica fundamental da dominação abstrata do valor: como princípio universal pressuposto, ele define ao mesmo tempo as capacidades universais em termos de tempo de trabalho e “eficácia”, às quais todos os homens sobre a terra devem se submeter, sem poder influir sobre elas. O mercado mundial a controla com um rigor impiedoso.

Mas o que isso significa? Primeiro: lá onde quando a produção não se faz pelo mais alto nível tecnológico e organizacional, pode-se certamente “compensar” o atraso aumentando o tempo de trabalho, diminuindo as leis trabalhistas e os custos com a previdência social, proteção do meio-ambiente, etc. Portanto, mesmo quando os respectivos capitais individuais podem alcançar uma valorização rentável, isso não significa de modo algum um crescimento da massa de valor no nível do capital social global. Pois, a força de trabalho utilizada desse modo revela-se extremamente sub-produtiva quando medida em relação ao nível mundial de produtividade, na medida em que, por exemplo, 12 horas de trabalho exaustivo numa sweatshop representa menos valor que uma hora ou alguns minutos de trabalho numa fábrica high-tech que produz para o mercado mundial. Mesmo que as pessoas sejam ainda mais exploradas, isso não pode compensar a gigantesca (e cada vez maior) disparidade tecnológica. A violenta expansão do trabalho de miséria precarizado não é, nesse sentido, expressão da ampliação do valor ou da base da acumulação de capital e, portanto, uma solução capitalista para a crise, mas antes sua forma de desenvolvimento e imposição. Ainda que seja totalmente indiferente à forma pela qual os capitais individuais obtêm seus lucros (eles combinam, conforme as oportunidades e o diferencial de custos, setores high-tech altamente produtivos e trabalho barato subprodutivo), a massa de seres humanos é simplesmente forçada a se vender de algum modo, uma vez que não possuem alternativa nas condições sociais dadas.

É muito redutor descrever esse desenvolvimento simplesmente como uma “nova organização do sistema”, que deixa coexistir “diferentes formas de organização do trabalho” (p. 161), como o faz ERN.  Isso não é mais que uma foto que se limita ao registro da empiria. De fato, essa “coexistência” consiste num processo dinâmico e contraditório de uma espiral descendente que decorre do derretimento da base do valor e da precarização. Enquanto, por um lado, o nível de produtividade sobe a níveis cada vez mais altos nos setores-chave da produção para o mercado mundial e o valor dos trabalhos subprodutivos não cessa de cair, a eliminação do trabalho vivo agrava a concorrência de dumping entre aqueles que foram tornados supérfluos, mas continuam dependentes da venda de sua força de trabalho. Essa espiral é a expressão do processo fundamental da crise que pode ainda se prolongar durante muitas décadas, mas que conhece uma única direção: para baixo.

No entanto, mesmo que esse processo de crise esteja minando os fundamentos da sociedade da mercadoria em seu conjunto, sua evolução não afeta todos os indivíduos da mesma maneira. Ao contrário, ele agrava as hierarquias, as fraturas e exclusões nas quais esta sociedade está fundada – num declínio geral dos níveis de reprodução material e social. Nesse contexto, ERN tem razão de assinalar que as mulheres são “particularmente atingidas, de modo que se possa falar de uma flexibilidade específica ao sexo” (op. cit.). No entanto, ele vai além quando vê aí uma “estratégia consciente para a reprodução do capital” (ibid.), no sentido de uma maior abertura para novos campos de acumulação, dentre os quais fariam parte a engenharia genética e o trabalho doméstico. Mas o curso das coisas vai exatamente na direção oposta. No auge do desenvolvimento do capitalismo, durante o boom de expansão fordista do pós-guerra, com a imposição da produção de mercadorias, as atividades definidas como “femininas” e cindidas da esfera do trabalho foram, de fato, até certo ponto, comercializadas (eletrodomésticos, alimentos pré-preparados etc.) ou substituídas por serviços organizados pelo Estado (sobretudo nos setores de saúde e assistência); isso não elimina a lógica da dissociação subjacente, mas contribui para descolocar as fronteiras e provocar certa confusão na ordem patriarcal.

No processo de crise, são precisamente essas atividades que foram, primeiramente, de um modo específico, “reprivatizadas”, que agora, de forma intensificada, são descarregadas sobre a “família”; o que, nas condições da hierarquia sexual dominantes, significa: sobre as mulheres. E isso não é apenas um processo externo de regressão ao nível da “divisão sexual do trabalho”, mas vem acompanhado de uma revitalização da ordem sexual constituída pelo capitalismo como com um “asselvajamento do patriarcado” (Scholz 1998). Não é por acaso que, nas cada vez maiores zonas de crises e catástrofes deste mundo, são principalmente as mulheres que, individual ou coletivamente, são encarregadas da (sobre)vivência e garantem as redes de auto-assistência e de auto-organização. Ao contrário, são quase que exclusivamente os homens, sob a forma de violência individual ou organizada em bandos, que destroem ainda mais os fundamentos da reprodução, enquanto o processo de crise econômica o faz de todo modo. Barbarização objetiva e subjetiva da sociedade capitalista se entrelaçam muito diretamente em sua fase de declínio.

Para o coletivo ERN, ao contrário: “… não é somente na sociedade capitalista que se barbariza o patriarcado” (op. cit.). Mas a quais sociedades não capitalistas eles se referem? Há muito tempo que a sociedade da mercadoria estabeleceu-se como sistema mundial, absorvendo ou marginalizando todas as outras formas sociais e culturais de socialização. Não apenas o trabalho, o valor e a mercadoria impuseram-se como princípios coercivos da mediação social, mas também a estrutura da hierarquia sexual, a qual eles se encontram estreitamente ligados, se generalizou. Isso não quer dizer que a sociedade da mercadoria tenha criado o patriarcado ex nihilo, como insinua ERN, mas que há uma forma muito específica de hierarquia sexual inerente a esta ordem, baseada na dissociação de todos os momentos emocional-sensíveis que não se dissolvem no auto-movimento abstrato do valor e são inscritos estruturalmente como “femininos” (Scholz 1999). Existem certamente, dentro dessa hierarquia, muitas diferenças devidas aos diversos contextos culturais e às diferentes histórias nas quais se deu a integração ao sistema capitalista mundial desenrolou-se. Assim, o surgimento em todo o mundo de formas aparentemente “arcaicas” de dominação patriarcal na crise, pode ser precisamente decifrado com um fenômeno da “modernização” e de seus colapsos, tal como os “fundamentalismos” que o acompanham (por exemplo, os talibãs).

Esperar sua própria morte?

Os argumentos mais comuns contra o diagnóstico de que o capitalismo atingiu seus limites absolutos são de que ele seria “objetivista” (Santini, op. cit.), “catastrofista” (Reeve, op. cit., p. 5) e “profundamente determinista” (ERN, op. cit.). Em geral, eles são acompanhados pela acusação de imobilismo. Ela pressupõe o raciocínio suicida de que não seria necessária uma ação consciente para superar a sociedade da mercadoria, pois ela colocaria um fim a si mesma. “Pois aquele que espera que a máquina do capital detenha-se ela mesma corre o risco esperar a sua própria morte” (ERN, op. cit.). Ora, o Manifesto não pretende em lugar algum que seria preciso cruzar os braços e esperar o “colapso do capitalismo”. Ao contrário, ele faz uma única exortação: defender-se contra as imposições do processo de crise e de sua gestão. Como se chega então a esta bizarra interpretação bizarra?

O que retorna aqui é o espectro da metafísica da história do marxismo tradicional, segundo o qual o prognóstico dos limites objetivos da sociedade capitalista sempre esteve indissociavelmente ligado à superação desses mesmos limites. Isto é o resultado inerente de uma teoria que possui uma visão ao mesmo tempo externa e positiva acerca da contradição entre forças produtivas e relações de produção. Pois ela supostamente anteciparia a preparação da sociedade socialista, promovendo a socialização dos meios de produção e intensificando os antagonismos de classe, que, por fim, dependeria apenas de o “proletariado” se tornar consciente disso para por um fim à dominação do “capital”. Nessa perspectiva, pressupõe-se sempre um sujeito da emancipação “objetivamente” dado, que deve apenas se adquirir consciência da sua tarefa histórica e se organizar para isso.

Depois de dizer adeus ao otimismo histórico do movimento operário, a esquerda rejeitou ao mesmo tempo a idéia de um limite interno do capitalismo. Quem persiste nessa idéia se expõe à censura de crer numa metafísica da história. Em contraste com isso, é amplamente aceito que o capitalismo poderá perdurar eternamente, enquanto não surgir um poderoso contrassujeito capaz de varrê-lo do mapa. Essa concepção parece não requerer maiores explicações. Não vem ao espírito dos seus representantes que ela mesma depende fortemente de uma metafísica da história, visto que atribui ao capitalismo uma espécie de vida eterna e uma potência de regeneração infinita, sem mais justificar esta idéia. Não passa pela mente de seus representantes que ela mesma é essencialmente uma metafísica da história, pois descreve sem maiores fundamentações o capitalismo como algo eterno e possuidor de uma infinita capacidade de regeneração. Do ponto de vista atual, o grotesco otimismo da histórica do velho movimento operário e do marxismo tradicional não estava equivocado porque insistiu numa lógica objetivada que seria inerente à contradição entre as forças produtivas e as relações de produção. O erro consiste, em primeiro lugar, em transfigurar a história muito específica da sociedade capitalista numa lógica compreendendo a totalidade da história (“materialismo histórico”) e, em segundo lugar, supor que ela nos levaria, por fim, pelo menos até os umbrais da emancipação social. (Höner, 2004 e Trenkle 2000).

De fato, a lógica de desenvolvimento autonomizada da sociedade produtora de mercadorias não é de modo algum positiva. Mesmo quando ela produz determinados potenciais, como vimos acima, para criar algo útil e passível de ser racionalmente desenvolvido por uma sociedade livre, isto não significa que ela também crie as condições objetivas e subjetivas de sua própria superação. Enquanto sistema fetichista autonomizado, no qual as relações sociais, em formas reificadas, ganham vida própria, dominando os seres humanos como uma potência aparentemente externa, e que se comporta de um modo totalmente indiferente em face aos conteúdos concretos e às finalidades sensíveis, a sociedade capitalista está fundamentalmente marcada por uma tendência para a aniquilação e para a destruição.

Descartar tudo isso como “catastrofismo” significa fazer silencio sobre a catástrofe real, de um processo de crise muito real, que hoje atinge grande parte da humanidade já declarada supérflua pelo sistema de trabalho abstrato. Pois é exatamente onde não é mais possível uma valorização do capital em larga escala que a crise produz as piores devastações. Por exemplo, lá onde a participação no mercado mundial colapsa, o Estado nacional também desmorona e agora bandos de saqueadores prosseguem a concorrência na forma da guerra e da pilhagem – como em grande parte da África e no antigo bloco do Leste. Ou onde as pessoas são impedidas de ter acesso a terras agrícolas, edifícios e fábricas, mesmo que estes há muito já não possam ser utilizados de forma capitalista porque o mercados colapsaram. Pouco importa que homens morram de fome enquanto que, muito perto, recursos estão abandonados ou foram postos fora de serviço porque se tornaram “não rentáveis” em termos de trabalho e de produção de mercadorias. Assim a indiferença total desta forma de sociedade no que diz respeito às necessidades concretas dos homens torna-se visível em toda sua brutalidade. Os recursos só são socialmente aproveitados quando representam valor e podem ser empregados para a valorização do valor. Qualquer outra possibilidade de utilização (por exemplo, a produção auto-organizada de alimentos para os que estão famintos, mas estão privados de poder de compra) acha-se imediatamente declarada inadmissível e será impedida pela violência, se necessário. O caráter de fim em si da forma-mercadoria torna-se aqui totalmente grotesco. A forma social é conservada com toda violência apenas para continuar perdurando, embora sua substância, a utilização maciça de trabalho vivo, desapareça. Assim o fetichismo do trabalho e da forma-mercadoria inclina-se claramente para a destruição do mundo. O que não é mais possível se encaixar no interior dos princípios formais da sociedade da mercadoria simplesmente não tem permissão para existir.

Nessas condições, a dificuldade fundamental é que um movimento de emancipação social não pode se formar senão contra a lógica de destruição e aniquilamento do processo de crise. Essa é uma situação histórica fundamentalmente diferente daquela na qual o movimento operário se constituiu. Este, enquanto representante organizado da mercadoria-força de trabalho, podia apoiar-se sobre a tendência objetiva de uma generalização do sistema da mercadoria e do trabalho. Isso alimentava seu otimismo histórico quando se tratava, de fato, de um traço de sua imanência fundamental. Nós não pretendemos negar que tenham existido no movimento operário momentos e tendências emancipatórias que foram além da imanência própria à luta dos vendedores de força de trabalho pelo seu reconhecimento social. Mas precisamente estes momentos e estas tendências não representavam “em si” o proletariado, o que fez com que sempre fossem integrados ou neutralizados sob a pressão objetiva do movimento de expansão capitalista. A possibilidade da emancipação social não está fundada num contra-sujeito objetivamente predestinado “em suas lutas” a se tornar um “sujeito para si” (op. cit.), como escreve ERN apoiando-se em Lukács, mas esses momentos estão contidos, em princípio, na resistência solidária contra as imposições do processo de crise e sua gestão (pós)política em todos os níveis e domínios das relações sociais. (Lohoff, 2004 e Trenkle 2004). Um pressuposto essencial dessa compreensão é que não existe mais qualquer perspectiva no interior da lógica capitalista e que, portanto, a apropriação da riqueza social, em ruptura com essa lógica, constitui uma necessidade existencial. Nesse sentido, a análise da crise não tem nada que ver com uma exortação para esperar sua própria morte. Mas antes delineia o campo no interior do qual se moverão as lutas pela emancipação social nas condições do século XXI.

Tradução: André Villar Gomez

[1]
Certas objeções devem-se provavelmente também ao fato de que os textos que explicitam as teses mais apodíticas do Manifesto não foram traduzidos (ou apenas parcialmente) em outras línguas. É necessário, por outro lado, observar que críticas similares foram igualmente ditas no mundo de língua germânica.

[2]
Para a crítica de Lukács, ver Postone, Time, Labor and Social Domination, Cambridge/New York, 1993.

[3]
“A transformação completa do mundo antes num mundo de meios que num mundo de fins é ela mesma a consequência do desenvolvimento histórico dos métodos de produção. À proporção e à medida que a produção material e a organização social tornam-se cada vez mais complicadas e cada vez mais reificadas, reconhecer os meios enquanto tais apresenta dificuldades crescentes, visto que revestem a aparência de entidades autônomas” (Max Horkheimer, Sobre a crítica da Razão instrumental, 1985 [1947]).

[4]
Não se trata de afirmar que somente o capitalismo poderia engendrar essas potencialidades. Isso poderia, em princípio, se passar ter se passado de outra maneira. Nesse sentido, não é necessária uma justificação a posteriori da “missão civilizatória” do capital, como o faz frequentemente o materialismo histórico com seu otimismo mecanicista da história e sua teleologia. Mas é preciso constatar como um fato histórico que o capitalismo engendrou certas potencialidades (assim como outras sociedades fetichistas), e esta é a base que serve de ponto de partida para a liberação.

 

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